Guardini Senhor

Romano Guardini — O SENHOR
Título original DER HERR (Werkbund-Verlag, Würzburg, 1951).

Tradução de Fernando Gil

Prefácio
QUEM quer que se proponha falar sobre a personalidade e a vida de Jesus Cristo deve saber claramente o que pretende e quais os limites impostos neste domínio a toda e qualquer vontade.

Poderia, seguindo a tendência do nosso tempo, tentar uma psicologia de Jesus: simplesmente, essa psicologia não existe. Será talvez possível analisar a psicologia de um Francisco de Assis — na medida que não desponta ainda nele, simples homem, Aquele que está acima do homem e no qual este se fundará no sentido Deus. A isso alude S. Paulo quando diz que «homem espiritual… não é julgado por ninguém» (1Cor., 2, 15). Seria todavia possível, e belo, procurar saber onde se enraíza esta maravilhosa personalidade; como foram condicionados alguns traços da sua natureza; como foi possível virem a formar uma tão patente unidade as forças contraditórias que nele aparentemente existiam, e assim por diante.

É impossível fazer o mesmo em relação a Jesus Cristo, a não ser dentro de limites muito apertados. Se, não obstante, se procurar ir mais longe, destruir-se-á a sua imagem. Porque no imo da sua personalidade reside o mistério do Filho de Deus, e toda a «psicologia» é superada; esse mistério cujo reflexo propiciado pela graça se encontra na insondabilidade do cristão. No fundo, só isto pode tentar-se: mostrar a partir de premissas sempre novas, como todas as qualidades e características desta figura terminam no impenetrável; mas num impenetrável que é ao mesmo tempo pleno de uma promessa infinita.

Poder-se-ia, também, como já foi muitas vezes ensaiado, escrever uma «vida de Jesus». Mas também isto é, rigorosamente, impossível. Pode narrar-se a vida de um Francisco de Assis — na medida, também, em que o mistério do novo nascimento e da graça se não opõe a quaisquer «porquês» e «comos». Mas é possível investigar como se situou ele no seu tempo; como este o informou e ele o formou; como, chamando a si todas as forças vitais da época, se transforma na sua miais pura expressão ao mesmo tempo que permanece ele próprio; qual a maneira por que procurou o Uno, no qual receberá a sua plenitude; quais os erros, quais as vivências inquietas, quais os estádios que aparecem votados à realização desta procura, e assim por diante. Semelhante tarefa só pode ser efetuada em relação a Jesus dentro ainda de limites muito estreitos. Decerto se insere Ele numa conexão historicamente determinada e o conhecimento das forças nesta vigentes nos ajudam a melhor O compreender. Mas nem o seu ser nem os seus atos podem ser deduzidos de dados históricos, porque Ele provém do mistério de Deus e para este retorna, depois de haver «vivido entre nós» (Atos, I, 22). Decerto será também possível atribuir uma importância decisiva a certos acontecimentos da sua vida, reconhecer neles uma orientação de sentido e verificar como se consuma tal sentido; mas nem por isso será lícito falar-se de um verdadeiro «desenvolvimento».

Não se poderá ainda referenciar a quaisquer «motivações» a trajetória do seu destino e a maneira como cumpre a sua missão; pois o último porquê emana da região inacessível que Ele designa como a «vontade do Pai» e que escapa a qualquer esclarecimento histórico.

São os evangelhos, em textos como estes, que nos dizem o que nos é possível fazer: «E Jesus ia progredindo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e cios homens» (Lucas, 2, 52). Viveu na «plenitude do tempo» (Gál., 4, 4). Deles resulta que Jesus saiu de um meio histórico conhecido, que foi marcado par Ele, que a sua vida constituiu uma síntese profunda de uma forma e de um devir — mas, também, que não será possível analisá-la à maneira dos historiadores; que, pelo contrário, vezes sem conto teremos de estacar perante um incidente, uma palavra, e escutar, aprender, adorar e obedecer.

Estas «meditações» não se pretendem exaustivas. Não aspiram a contar a vida de Jesus no seu conjunto, e antes apreendem certas palavras e certos acontecimentos. Não pretendem descrever o desenvolvimento lógico da sua figura, e antes desenhar nela um traço, outro depois, por forma a que eles apareçam realmente vivos. Não são, também, dissertações científicas, quer históricas quer teológicas, mas alocuções espirituais pronunciadas durante quatro anos no ofício dominical, não visando mais do que desempenhar a missão confiada pelo Senhor aos seus: anunciar a sua Pessoa, a sua mensagem e a sua obra.

O autor salienta que nada de «novo» pretende oferecer; nem qualquer nova interpretação de Cristo, nem uma melhor teoria cristológica. Não se trata aqui do novo, mas do eterno. Mas é também verdade que se o eterno surgisse repentinamente diante do tempo efêmero, o nosso, ocorreria então algo efetivamente «novo», puro, fecundo, que destruiria a poeira do hábito.

O leitor deparará por vezes com pensamentos pouco comuns. Pretendem apenas ajudar uma melhor reflexão sobre o mistério de Deus; esse mistério «escondido desde os séculos e as gerações… Mas, agora, ele foi manifestado aos seus santos, a quem Deus quis dar a conhecer qual seja a riqueza de glória deste mistério entre os Gentios, que é Cristo no meio de vós, a esperança da glória!» (Col., I, 26-27). Em face desse mistério, os pensamentos humanos não significam muito. O homem pode utilizá-lo, mas, também, pô-los de lado. O que importa é o conhecimento que dá o próprio Cristo quando «nos desvendava as Escrituras» e «o nosso coração começou a arder cá dentro» (Lucas, 24, 27-32).

Os textos bíblicos referidos nestas meditações foram objecto de uma nova tradução por Wolgang Rüttenauer. Ingeborg Dieck e Hans Waltmann ocuparam-se do índice de assuntos, e Marie Gõrner do índice das referências bíblicas. Aqui lhes manifesto a minha gratidão, bem como ao Dr. Heinrich Kahlefeld, cujo conselho me foi muito útil1.

O Autor permite-se finalmente indicar aqui o seu livro A Natureza do Cristianismo. (Würzburg, 1949), no qual se desenvolvem categorias que muito ajudarão à compreensão da presente obra; e ainda os escritos A Revelação (Würzburg, 1940), Os Últimos fins (id., 3-a ed., 1952) e A Imagem de Jesus Cristo no Novo Testamento (id., 3_a ed., 1953).


Excertos:


  1. Na edição portuguesa utilizaram-se, sempre que possível, as traduções da Cónego J. Falcão. (N. T.).