Romano Guardini — O Senhor
O Senhor — Origem e antepassados
SE, nesse tempo, em Cafarnaum ou em Jerusalém alguém houvesse perguntado ao Senhor: Quem és Tu? Quem são os teus Pais? De que estirpe provéns? — poderia Ele ter respondido como no oitavo capítulo do Evangelho de S. João: «antes de Abraão existir, Eu sou» (58). Mas poderia também responder, conforme o segundo capítulo de São Lucas, que o Messias provinha «da casa e linhagem de David» (4). Como começam os textos evangélicos sobre a vida desse Jesus de Nazaré, que é o Cristo, o Ungido?
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João procura a origem no mistério da vida de Deus. O seu evangelho começa assim:
«No princípio era o Verbo
e o Verbo estava junto de Deus,
e o Verbo era Deus!
Ele estava, no princípio, junto de Deus.
Tudo, por meio d’Ele, começou a existir
E, sem Ele, coisa alguma começou a existir.
N’Ele, o que existe era Vida
E a Vida era a Luz dos homens…
Estava no mundo
E o mundo, por meio d’Ele, começou a existir, E o mundo não o conheceu… E o Verbo fez-Se carne
E habitou entre nós.
E nós vimos a sua gloria,
gloria como de um Filho Único que vem do Pai„
cheio de graça e de verdade».
(João, I, 1-14)
Esta origem reside em Deus. Deus é o Infinitamente-Vivo. Mas vive e subsiste numa maneira diversa da do homem. A Revelação diz-nos que não existe o Deus puramente único, tal como foi concebido pelo judaísmo post-cristão, pelo Islão e em geral, pela consciência moderna. O Deus da Revelação subsiste nesse mistério que a Igreja exprime pela doutrina da Trindade das Pessoas na Unidade da vida. Aí busca S. João a raiz da existência de Jesus: na segunda das Pessoas sagradas, no «Verbo», no Logos pelo qual Deus, O que profere, revela a plenitude do seu ser. Aquele que fala e Aquele que é falado voltam-Se Um para o Outro, e são um só no amor do Espírito Santo. O segundo dos rostos de Deus, aqui designado por «Verbo», chama-se também «Filho», pois Aquele que o «pronuncia» chama-se Pai; e o Espírito Santo, no discurso após a Ceia, possui os nomes amigos de «Consolador» e «Assistente», pois Ele faz com que os irmãos e irmãs de Jesus não fiquem «órfãos» depois da sua partida para o céu. Foi deste Pai celestial, pela força deste Espírito Santo, que o Redentor veio até nós.
O Filho de Deus tornou-Se homem. Não só desceu para um homem para nele fixar morada, mas tornou-Se Ele próprio um homem. «Tornou-Se», realmente — e, para que não possa subsistir a menor dúvida, para que, por exemplo, se não possa dizer que temeu a baixeza do corpo e somente Se uniu à interioridade de uma alma santa ou à elevação de um espírito escolhido, S. João diz, marcadamente: Ele «fez-Se carne».
História e destino consumam-se em primeiro lugar, no corpo, e não no puro espírito. Esta verdade ocupar-nos-á muitas vezes neste livro. O próprio Deus desceu para o Redentor, para possuir uma história e um destino. Mediante a Incarnação, instalou-Se no meio de nós, e fundou uma nova história. Destinou toda a história precedente a preparar e a esperar «o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo». E determinou tudo quanto se segue, pois tudo se decidirá conforme se aceite ou se recuse a sua Incarnação. Ele «habitou entre nós» — ou, mais exatamente, «estabeleceu a sua tenda entre nós». E a «tenda» do Logos era o seu corpo; a santa tenda de Deus entre os homens, o tabernáculo, o templo que, como disse aos fariseus, «se desfaria e levantaria em três dias» (João, 2, 19).
Entre esse nascimento eterno e o ser-carnal no tempo situa-se o mistério da Incarnação. Este facto é afirmado por S. João com rigor, com uma austeridade metafísica. Põe de lado a plenitude amorável da figura, a interioridade que tornam tão sugestiva a narração de um Lucas. Tudo é aqui concentrado sobre uma realidade última, poderosa e simples: O Logos, a carne, a entrada no mundo; a origem eterna, a realidade terrena e tangível, o mistério da unidade.
O princípio da existência de Cristo aparece diversamente nos evangelhos de S. Mateus, Marcos e Lucas.
S. Marcos não fala da Incarnação. Os oito primeiros versículos falam do Precursor; e diz-se imediatamente depois: «Jesus, por aqueles dias, veio de Nazaré da Galileia e foi, por João, baptizado no Jordão» (Marcos, 1, 9).
Mas S. Mateus e S. Lucas reproduzem a genealogia de Jesus: o caminho da sua estirpe através da história.
S. Mateus coloca-a no início do seu Evangelho. Começa em Abraão e prossegue-se através de David e da série dos reis de Judá até José, «esposo de Maria, do qual nasceu Jesus, que é chamado Cristo» (Mat., 1, 16). Lucas traça-a no terceiro capítulo, depois da narração do baptismo de Jesus. Este, diz-nos, «tinha cerca de trinta anos, sendo filho, como se supunha, de José, filho de Heli, filho de Matat, filho de Levi», e assim por diante, através de uma sequência de nomes dos quais nada sabemos, até David; e, através dos ascendentes deste, até Jacob, Isaac, Abraão; e estes, através dos nomes dos poderosos patriarcas originários, Noé, Lamech, Enoch, até Adão, «filho de Deus» (Lucas, 3, 23-38).
Já tem sido perguntado como se compuseram estas duas genealogias, tão diversas. Pensam alguns que a primeira é a da Lei, e portanto de José, pai, chefe legal de Jesus. A segunda seria a do sangue e portanto de Maria; mas como, segundo o direito do Velho Testamento, o nome de uma mulher não podia perpetuar a estirpe, o seu teria sido substituído pelo de José. A isto se deveria ainda somar o ponto de vista do casamento levirático, segundo o qual um celibatário deveria casar-se com a viúva de um irmão morto sem filhos, e ceder o primeiro filho do novo casamento à genealogia do defunto, enquanto os seguintes permaneceriam na do pai pelo sangue.
Através destas considerações se explicariam as divergências encontradas nas duas nomenclaturas. O facto de ser S. Lucas a fornecer-nos a árvore genealógica de Maria tornaria esta interpretação mais plausível, uma vez que foi ele sobretudo quem nos fez melhor conhecer a Mãe do Senhor. Mas não queremos demorar-nos mais tempo na discussão destas intrincadas questões.
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É verdade que ficamos pensativos ao percorrer estas linhas de nomes. Independentemente da dignidade que lhes confere a palavra de Deus, possuem também em si mesmos uma grande verosimilhança. Em primeiro lugar, porque os povos antigos tinham uma memória muito fiel. Mas também porque as genealogias das casas mais importantes eram depositadas nos arquivos do Templo. Sabemos, efetivamente, que Herodes mandou destruir esses documentos por ser um parvenu, querendo tirar às velhas famílias a possibilidade de o compararem com elas.
Como estes nomes falam! Eis começam a surgir, da obscuridade dos séculos, as figuras dos tempos originários: Adão, em volta do qual flutua a saudade pela perdida beatitude do paraíso; Set, que lhe nasceu após Caim haver matado Abel; Enoch, do qual foi dito viver familiarmente com Deus, que o teria levado Consigo sem o deixar morrer… Depois, Matusalém, o multissecular; e Noé, envolto .pelas águas fecundas do dilúvio… Assim se sucedem uns aos outros, marcos na estrada que cruza os milênios, desde o paraíso até aquele que Deus, pelo seu apelo, fez sair da sua raça, e do seu país, para com ele formar uma aliança: Abraão, que «teve a fé» e foi «amigo de Deus»; Isaac, o filho, que recebeu do milagre e que lhe foi devolvido pelo altar do sacrifício; Jacob, o neto, que lutou com o anjo de Deus — estas figuras que encarnam o que há de mais forte no Velho Testamento: subsistirem numa existência terrena, e ao mesmo tempo caminharem perante Deus. Possuem a mais profunda realidade terrena, estão ligados a todas as coisas da vida do homem; mas Deus está-lhes tão próximo, estão d’Ele tão impregnadas as suas palavras e os,seus actos, os bons como os maus, que são verdadeiras revelações…
O filho de Jacob, Judá, continua a estirpe, através de Farés e Aram, até David, o rei. Com este se inicia a grande história do povo. Guerras intermináveis de começo; depois, longos anos de magnífica paz sob o reinado de Salomão. Mas já nos últimos anos desse reino a casa real começa a tornar-se infiel. Mergulha-se depois, sempre mais profundamente, na escuridão do abismo; quedas e ressurgimentos alternam; através de guerra, fome, crimes e abominações se caminha para a destruição do reino e para o «exílio em Babilônia».
Desaparece aí o brilho da linhagem. Viverá doravante na pobreza e na obscuridade. «José, o esposo de Maria», é um trabalhador manual, e tão pobre que, na purificação, não pode oferecer um cordeiro e dá «duas pombinhas» (Lucas, 2, 24).
Toda a história do povo de Deus é evocada por estes nomes.
E não só por eles, também nos falam aqueles que foram riscados. Não foram riscados os nomes de Achab e dos dois que o seguiram por haverem sido amaldiçoados pelo profeta?
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Alguns destes nomes tocam-nos especialmente. São nomes de mulheres, mencionados marginalmente; acrescentados, segundo numerosos exegetas, para calar a boca aos judeus que se voltavam contra a Mãe do Senhor, mostrando-lhes a desonra da sua casa real.
Ponhamos à parte Ruth, a avó de David. Para o judeu puro, constituía uma mácula na linhagem real, uma vez que era moabita e havia introduzido nas veias de David um sangue estranho, proibido pela lei; para nós, o livrinho que tem o seu nome proporciona-nos uma imagem graciosa e terna…
Mas é dito de Judá, o mais velho dos filhos de Jacob, haver engendrado «Farés e Zara com Thamar». Esta Thamar era a sua própria nora. Casara-se primeiro com o seu filho mais velho, que morreu jovem; tornou-se depois a mulher de seu irmão Onan, mas contra a sua vontade e sem usufruir dos seus direitos. Deus irritou-se e Onan morreu. Depois desta morte, Judá recusou-lhe o terceiro filho, receando perdê-lo também. Thamar vestiu-se então com roupas de cortesã, e esperou o sogro, que fora tosquiar os seus carneiros, numa encruzilhada obscura. Concebeu assim os gémeos Farés e Zara. Foi Farés quem continuou a linhagem (Gên., 38)…
De Salomão é dito haver tido Booz, de Rahab. Mas esta era a cortesã que acolhera em Jericó os mensageiros de Josué; pagã como Ruth, era «hospedeira» ou «cortesã» — sendo estas duas palavras sinónimas no Velho Testamento (Jos., 2).
E depois: «O rei David engendrou Salomão com aquela que era a mulher de Uri». David era um homem real. O sinal da eleição residia nele desde a juventude. Inspirado pelo espírito de Deus, era poeta e profeta. Através de longas guerras, lançou os fundamentos do reino de Israel. Possuía a grandeza e a paixão do guerreiro; era generoso, mas duro e intransigente quando o julgava necessário. Uma mácula vergonhosa há contudo na sua honra, é o nome de Betsabé, esposa de um dos seus oficiais, Uri, o Hitita, um homem valente e fiel. Quando estava em campanha David desonrou o seu lar. Uri regressou, para dar notícias sobre a situação militar em volta da cidade de Rabba; o rei teve então medo, e procurou, mercê de subterfúgios, esconder o que se passara. Mas não o conseguiu e enviou de novo Uri para a frente, com esta carta: «Colocai Uri na frente, onde a batalha é mais intensa, e afastai-vos depois de trás dele, para que seja abatido e encontre a morte». Assim foi e David tomou para si a mulher de Uri. O profeta Natã revelou-lhe a cólera de Deus; David retornou a si; fez penitência, foi condenado a ver a morte da criança — depois, diz-se, levantou-se, comeu e foi para junto de Betsabé. Salomão foi o seu filho (2 Sam., 11 e 12.)
Tornou-se um de nós, diz S. Paulo do Senhor, igual em tudo a nós, excepto no pecado (Hebr., 4, 15). Empenhado em tudo o que diz respeito ao humano. A nomenclatura revela-nos o que isto significa: haver entrado na história do homem, com o seu destino e a sua culpa. Não quis poupar-se a nada.
Jesus decerto meditou muitas vezes nestes nomes durante os longos anos silenciosos de Nazaré. Como deve Ele ter então sentido profundamente aquilo a que chamamos história humana! Toda a sua grandeza, força, mas, também, confusão, mesquinhes, escuridão e mal — tudo isto o assumiu Ele com a sua existência, toda esta história caiu sobre si, para que Ele a guardasse no coração, a levasse a Deus, e por ela respondesse.