Romano Guardini — O Senhor
A Mãe do Senhor
SE queremos compreender a natureza particular de uma árvore, observamos a terra que contém as suas raízes, e da qual nasce a seiva que lhe alimenta o tronco, os ramos e os frutos. Será do mesmo modo bom olhar para o terreno de onde emerge a figura do Senhor: Maria, sua mãe.
Diz-se-nos que ela era de sangue real. Cada homem é algo único, singular e para si; os condicionamentos que presidem ao seu nascimento não penetram a sua individualidade, onde ele está presente perante si próprio e perante Deus. Não há aqui «se» ou «porquê», «não há Judeu nem Grego, não há escravo nem livre» (Gal., 3, 27-28). É verdade; mas o mais importante, e talvez definitivo em todas as coisas, mesmo as mais pequenas, depende da nobreza do homem. A maneira como Maria responde à saudação do, anjo tinha um caráter real, nobre. Algo extraordinário lhe era proposto. Pedia-se-lhe um salto para o escuro, uma entrega a Deus. Fê-lo com uma grandeza simples, de que ela própria não estava consciente. Boa parte desta grandeza decerto lhe veio da nobreza inata do seu ser.
A partir de então, o seu destino modela-se pelo do seu filho. Começa a ser assim imediatamente, e assim será sempre: é o facto doloroso que se insinua entre si e o seu noivo… é a viagem a Belém, e, aí, na necessidade e na pobreza, o nascimento do seu filho… é a fuga para o Egipto e a vida em terra estranha, longe da segurança que até então fora a sua; uma vida instável e ameaçada por perigos, até poder regressar a casa.
E quando o filho, aos doze anos, se demora no Templo, e ela O encontra após uma busca ansiosa, parece revelar-se-lhe pela primeira vez a divina estranheza d’Aquele que entrara na sua vida (Luc, 2, 41-50). À observação tão natural: «Filho, porque procedeste assim connosco? Olha que teu Pai e eu andávamos aflitos à tua procura!» — responde a criança: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu tenho de estar em casa de meu Pai?». Maria deve então haver pressentido que se consumaria o que Simeão lhe profetizara: «Uma espada te há-de trespassar a própria alma» (Luc, 2, 35). Não costuma acontecer que uma criança, num tal momento e com uma serena compreensão de si própria, pergunte à sua mãe angustiada: Porque me procuraste? Não nos admiramos, por isso, que a seguir nos seja dito: «Mas eles não entenderam as palavras que lhes disse».
Mas, pouco mais adiante: «Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração». Não as «compreendendo», foi-nos já dito; essas palavras e essas atos, não as recebia ela com as capacidades do entendimento — mas com as capacidades do que é profundo e fundamental, tal como a terra acolhe no seio uma semente preciosa, para que esta possa frutificar.
Seguem-se dezoito anos de silêncio. Deles nada nos dizem as Escrituras. Mas o silêncio dos evangelhos fala poderosamente aos ouvidos atentos. Dezoito anos de silêncio, que entram para «o seu coração»… Nada mais nos é dito, além de que a criança era dócil, e de que «progredia em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens». Uma maturação silenciosa e profunda, rodeada pelo amor da mais santa dè todas as mães.
Abandona depois o lar e inicia a sua missão. Mas -da está ainda ao pé. Assim, nas bodas de Caná, onde vemos como que um último sinal de solicitude e de direção maternais (João, 2, 11)… Outra vez, tendo ouvido em Nazaré um rumor equívoco e perturbante levanta-se, procura-O, e queda-se angustiada diante da porta… (Marc, 3, 21, 31-35)… E está novamente ao pé d’Ele durante os últimos dias, perseverando debaixo da cruz (João, 19, 25).
A vida inteira de Jesus está banhada pela proximidade da sua mãe. A sua maior força é o seu silêncio.
Há uma frase que nos mostra como o Senhor lhe estava profundamente unido. Ele está no meio da multidão, e fala. Subitamente, a voz de uma mulher: «Felizes as entranhas que Te trouxeram e os peitos a que Te amamentaste». E Jesus responde: «Felizes antes os que ouvem a palavra de Deus e a guardam». Não é como se Ele Se evadisse desta multidão ruidosa? Como se um profundo bater de sinos Lhe atravessasse a alma, e Ele estivesse em Nazaré e sentisse a presença de sua mãe? (Lucas, II, 27-28).
Mas em tudo o mais — se refletimos sobre as palavras que Jesus dirigiu a sua mãe, e as deixamos agir sobre nós tal como elas emergem da situação em que foram pronunciadas —, experimentamos de cada vez o sentimento de um abismo entre ela e Ele.
Nesse tempo —. era Jesus ainda uma criança; ficara em Jerusalém sem dizer palavra, numa altura em que a cidade estava cheia de peregrinos vindos de todas as terras, e em que por isso eram de temer, não só acidentes, como violências de toda a espécie! Ela tinira, bem o direito de perguntar porque procedera assim. Mas Ele responde com espanto: «Porque Me procuráveis?». Somos nós quem não se espanta, lendo a frase seguinte da narração: «Mas eles não entenderam as palavras que lhes disse».
Em Caná, na Galileia, está sentado à mesa com todos os outros comensais da boda. São manifestamente gente humilde, que pouco de seu possuem. O vinho falta, e todos sentem já o embaraço em que se irão encontrar os donos da casa. Dirige-se-Lhe então Maria, num tom de súplica: «Não têm vinho…» Mas Ele responde-lhe: «Que Me desejas, mulher? Ainda não chegou a minha hora». Que quer isto dizer, senão: só agirei conforme a minha hora; conforme a vontade de meu Pai, tal como ela Me é manifestada em cada instante — e é tudo… Logo depois, é verdade, intervém, mas porque a «sua hora» chegou — à maneira como a sabedoria de Deus (que a comparação o possa fazer melhor compreender) apela, de um momento para o outro, para os profetas (João, 2, 1-11).
Quando desce da Galileia para O procurar, Ele está numa casa, ensinando, e dizem-Lhe: «Estão ali fora tua mãe e teus irmãos, que Te procuram». Mas Ele pergunta: «Quem são minha mãe e meus irmãos? Quem fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe!» (Marc, 3, 31-35). Decerto se dirigiu depois a ela, e lhe manifestou todo o seu amor — mas a palavra foi dita, e sentimos como ela é angustiante, como nela aparece patente a infinita distância de que vive Jesus.
E, a palavra que acima considerámos como uma expressão de proximidade, poderia também significar distância: «Felizes as entranhas que Te trouxeram e os peitos a que Te amamentaste» — «Não — os bem-aventurados são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam!».
Quando, na cruz, está perto do fim, e, em baixo, a mãe, despedaçada por todos os sofrimentos do seu coração, d’Ele espera uma palavra — diz-lhe apontando para S. João: «Senhora, eis o teu filho». E para o discípulo: «Eis a tua Mãe» (João, 19, 26-27). Decerto havia neste dizer a solicitude do filho moribundo, mas o coração de Maria sentiu sobretudo o outro sentido: «Mulher, olha aí o teu filho!» Ele afasta-a de si. Está, inteiro, na «hora» que, agora, «chegou», grande, temerosa, tudo exigindo. Está na solidão extrema, com o pecado que sobre Si foi lançado, perante o juízo de Deus.
Maria esteve sempre ao seu lado. Viveu tudo quanto Lhe disse respeito; a sua vida era a d’Ele. Mas não por via do entendimento, a Escritura di-lo expressamente. «O Santo», Sanctum — como sugere bem este neutro o mistério e a distância de Deus — desceu a ela. Deu-Lhe tudo, o seu sangue, a sua honra, o seu coração, toda a sua força de amor. Enlaçou-O, mas Ele cresceu mais alto, sempre mais alto e mais longe de si. Uma infinita distância abrira-se diante de seu filho, que era «O Santo». Aí vive Ele, apartado dela. Ela não pudera compreender o sentido último desta vida. Mas como poderia compreender o mistério do Deus vivo! Fez, porém, uma coisa nesta terra cristãmente bem mais importante do que compreender, e que se fundou nesta mesma força de Deus que, no devido tempo, dá também o poder de compreender: ela teve fé; e num momento em que, no próprio e pleno sentido da palavra, ninguém mais tinha fé.
Que melhor revela a sua grandeza do que o grito da sua parente: «Feliz daquela que acreditou!» (Lucas, 1, 45). Nele se contém estas duas palavras: «Mas eles não entenderam as palavras que lhes disse» e «Sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração» (Lucas, 2, 50,51). Maria acreditou. E teve de levantar sempre de novo esta fé. Sempre mais fortemente, sempre mais duramente. A sua fé era maior do que a que qualquer outro homem jamais possuiu. Abraão impõe-se-nos pela grandeza terrível da sua fé; mas, a ela, foi-lhe pedido mais do que a Abraão. Não duvidar deste «Santo», que concebera, e que se afastara de si, a excedera, vivendo numa infinita distância: não duvidar da sua grandeza, ela, mulher, que conhecera e velara a sua fraqueza infantil… mas também não duvidar do seu amor, quando Ele deixou para trás a protecção que dela recebia… e, sobretudo, acreditar que assim tudo estava certo, e que a vontade de Deus assim se realizava… nunca se desencorajar, não se tornar fraca, mas, pelo contrário, perseverar e, pela força da fé, colocar o seu passo em cada um dos passos que dava o filho na sua incompreensibilidade — esta foi a sua grandeza.
Maria realizou cada um dos passos que o Senhor efetuou para o seu destino divino, mas na fé. Só o Pentecostes lhe deu a compreensão. «Entendeu» então aquilo que até esse momento «guardara no seu coração». Por esta fé, e mais do que pelos milagres da lenda, ela está mais próxima de Jesus e mais profundamente na obra da Redenção. A lenda pode encantar-nos pelas suas imagens graciosas, mas não nos faz viver; e muito menos quando se trata do essencial. É-nos pedido que, na fé, lutemos com o mistério de Deus e contra a má oposição do mundo. Não uma fé amavelmente poética, mas uma fé que é dura — sobretudo numa época em que se desvanecem os sortilégios embaladores das coisas, e as contradições ressaltam por toda a parte na sua plena força. Quanto melhor compreendermos a figura da mãe do Senhor a partir do Novo Testamento, melhor compreenderemos e viveremos a nossa vida cristã, tal como ela é realmente.
Ela é aquela que trouxe o Senhor no mais profundo de si mesma; através de toda a sua vida e até na morte. Continuamente teve de experimentar como Ele, vivendo do mistério de Deus, dela se afastava. Continuamente se elevava Ele para mais alto, e assim foi ela sendo trespassada pela «espada» (Lucas, 2, 35); mas, sempre também, ela se ergueu mercê da fé até Ele, e O envolveu de novo. Até que, por fim, Ele não quis mais ser seu filho. O outro, que estava ao pé dela, devia tomar o seu lugar. Jesus estava só, ao alto, no cume mais agudo da criação, perante a justiça de Deus. Mas ela, numa compaixão derradeira, aceitou a separação — e, graças a isso, voltou de novo, na fé, para junto d’Ele.
Sim, a verdade, «feliz aquela que acreditou!»