S. Gregório de Nissa — Vida de Moisés — Katarsis — Purificação
Nem sequer o fato de que o resplendor que ilumina a alma do profeta se ascende de um arbusto de espinhos ( Ex 3, 1-6 ) é inútil em nossa busca. De fato, se Deus é a verdade ( Jo 14, 6; 8, 12 ), e a verdade é luz, e a palavra do Evangelho utiliza estes nomes sublimes e divinos para o Deus que se nos manifestou através da carne, conclui-se que este caminho da virtude nos conduz ao conhecimento daquela luz, que desceu até a natureza humana, que não brilha com a luz que se encontra nos astros para que não se pense que seu resplendor provem da alguma matéria que ali está oculta, mas sim com a luz de uma sarça da terra, que com seus resplendores ilumina mais que todos os astros do céu. Esta passagem nos ensina o mistério da Virgem: a luz da divindade, que graças a seu parto, ilumina a vida humana, guardou incorrupta a sarça que ardia sem que a flor da virgindade se secasse no parto. Com esta luz aprendemos o que devemos fazer para permanecer dentro dos resplendores da luz verdadeira: que não é possível correr com os pés calçados até aquela altura da qual se contempla a luz da verdade, mas que é necessário despojar os pés da alma de seu invólucro de peles, morto e terreno, com o qual foi revestia a natureza no princípio, quando fomos despidos por causa da desobediência à vontade divina ( Gn 3, 21 ). Se fizermos isto, seguir-se-á o conhecimento da verdade, pois ela manifestará a si mesma, já que o conhecimento do que é, se converte em purificação da opinião em relação ao que não é. A meu ver, esta é a definição da verdade: não errar no conhecimento do ser. O erro é uma ilusão que se produz no pensamento a respeito do que não é, como se o que não existe tivesse consistência, enquanto a verdade é um conhecimento firme do que verdadeiramente existe. E desta forma alguém, depois de ter passado muito tempo em solidão embebido em altas meditações, conhecerá com esforço o que é verdadeiramente existente — aquilo que tem ser por sua própria natureza -, e o que é o não existente, isto é aquilo que tem ser só em aparência, ao ter uma natureza que não subsiste por si mesma ( Ex 3, 14 ). Julgo que o grande Moisés, instruído pela teofania, compreendeu então que fora da causa suprema de tudo, na qual tudo tem consistência, nenhuma das coisas que são captadas com os sentidos e que se conhece com o pensamento tem consistência no ser. De fato, ainda que a mente considere diversos aspectos nos seres, o pensamento não vê nenhum deles com tal suficiência que não necessite em nada de outro, isto é, com tal suficiência que lhe seja possível existir sem participar do ser. O que sempre é de igual forma, aquele que nem cresce e nem diminui, aquele que não se move a nenhuma mudança, nem para melhor ou para pior, este é, na verdade, alheio ao pior e não há nada melhor que ele; aquele que é participado por todos e que não fica diminuído com esta participação: este é o que verdadeiramente existe e cuja contemplação é o conhecimento da verdade. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 3.
Penso que seja conveniente apressar a marcha do discurso, pois com as poucas coisas que já consideramos facilitamos aos amantes do esforço a reflexão sobre as etapas restantes. Estas etapas podem significar as virtudes; quem avança ordenadamente seguindo a coluna de nuvem, acampa e descansa nelas. Passando por alto as etapas intermediárias, recordarei em meu discurso o prodígio da rocha, cuja natureza dura e sólida se converteu em bebida para os que tinham sede, dissolvendo-se sua dureza na brandura da água ( Ex 17, 6 e Sal 77, 15 e 1Co 10, 4 ). Não há nenhuma dificuldade em adaptar a continuação do relato à consideração espiritual. Aquele que abandonou na água o egípcio morto, e foi adoçado com o lenho, e gozou das fontes apostólicas repousando à sombra das palmeiras, esse também já se fez capaz de receber a Deus. Pois a pedra, como diz o Apóstolo, é Cristo, seca e resistente para os que não crêem; porem se alguém aproxima o bastão da fé, se converte em bebida para os sedentos e flui dentro de quem a recebe. Pois diz: Eu e meu Pai viremos e faremos nele morada ( Jo 14, 23 ). Tampouco devemos deixar de considerar isto: depois de atravessar o mar e ter sido adoçada a água para os caminhantes da virtude; depois daquele delicioso acampamento junto às fontes e às palmeiras, e depois de beber da pedra se ter esgotado totalmente as provisões trazidas do Egito, caiu do alto sobre eles um alimento simples e ao mesmo tempo variado. De fato, seu aspecto era simples, porem sua qualidade era variada, acomodando-se convenientemente a cada um segundo a natureza de seu desejo ( Ex 16, 2-16 ). Que aprendemos com isto? Aprendemos com que purificação convém que cada um se limpe da vida egípcia e estrangeira até o ponto de esvaziar totalmente o odre da própria alma de todo o alimento impuro preparado pelos egípcios, e receber assim, com alma limpa, em um só, o alimento que vem do alto: um alimento que não se fez brotar para nós de uma semente mediante seu cultivo, senão que é um pão preparado, sem semente e sem cultivo, que, descendo do céu, aparece sobre a terra. Pelo simbolismo da narração sabes perfeitamente qual é este alimento verdadeiro. O pão que desce do céu ( Jo 6, 51 e 6, 31 ) não é uma coisa sem corpo. Pois como poderia uma coisa incorpórea converter-se em alimento para o corpo? O que não é incorpóreo, evidentemente, é corpóreo. Pois bem, o corpo deste pão não foi produzido pela terra, nem pela semente, mas a terra, permanecendo tal qual é, se encontra cheia deste divino alimento que recebem os que têm fome, havendo conhecido previamente o mistério da Virgem através deste prodígio. Este pão, não produzido pelo cultivo da terra, é também a palavra que, graças à diversidade de suas qualidades, adapta sua força às capacidades dos que comem ( Sb 15, 21 ). SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 19.
Moisés novamente inunda o deserto para eles por meio da pedra ( Nm 20, 2-11 e Ex 17, 1-7 ). Este relato, em sua interpretação espiritual, nos ensina como é o sacramento da penitência. Com efeito, aqueles que depois de haver experimentado a água da pedra se voltam para o ventre, a carne e os prazeres egípcios, são castigados com a ânsia da participação dos bens. Porem graças ao arrependimento lhes é possível encontrar de novo a rocha que abandonaram, e abrir de novo o veio de água e saciar-se novamente da fonte. A pedra o outorga isto àquele Moisés que acreditou que a exploração de Josué era mais verdadeira que a de seus adversários, que via o ramo de uvas ( Jo 15, 1 ) pendente em nosso favor, e que de novo fez com a vara que a pedra manasse para eles. O povo ainda não havia aprendido a seguir as pegadas da grandeza de Moisés. Ainda se deixa arrastar para baixo, para os desejos servis, e se inclina aos prazeres egípcios. O relato mostra através destas coisas que a natureza humana é propensa a esta paixão acima de todas as demais, capaz de sucumbir à enfermidade por mil caminhos. Moisés, como médico que impede com sua arte que o mal vença sempre, não permite que a enfermidade predomine sobre eles a ponto de causar a morte ( Nm 21, 6-9 ). Posto que a concupiscência de coisas absurdas engendrou serpentes cuja mordida era portadora de morte ao introduzir o veneno em quem era alcançado por seus dentes, o grande Legislador neutralizou com a imagem de uma serpente a força das feras verdadeiras. Talvez seja tempo de revelar mais claramente o enigma. Existe uma só proteção contra estas perversas paixões: a purificação de nossas almas que tem lugar através do mistério da piedade. Entre as coisas que cremos no mistério, é ponto capital a fé na Paixão Daquele que por nós aceitou o padecimento. A cruz, com efeito, é um padecimento; quem olha para ela, como explica o relato, não é atingido pelo veneno da concupiscência ( Nm 21, 9 e Jo 3, 15 ). Olhar para a cruz não é outra coisa que converter a vida inteira de cada um em crucificação e morte ao mundo ( Ga 6, 14 ), inamovível por qualquer pecado, crucificando verdadeiramente as próprias carnes com o temor de Deus, como diz o profeta ( Sal 119, 120 ). O cravo que sujeita a carne é a continência. E posto que a concupiscência de coisas absurdas faz sair da terra serpentes portadoras de morte, — todo rebento da concupiscência é uma serpente-, a Lei nos mostra o que se revela no madeiro. Este é figura de serpente, porem não é serpente, como também disse o grande Paulo: Em semelhança da carne de pecado ( Rm 8, 3 ). A verdadeira serpente é o pecado; quem marcha junto do pecado se reveste da natureza da serpente. Assim pois, o homem é libertado do pecado por aquele que tomou sobre si a aparência de pecado e se fez igual a nós que nos havíamos transformado em imagem da serpente. Por ele é evitada a morte proveniente das mordidas, porem não são aniquiladas as feras. Chamo feras à concupiscência. Com efeito, a má morte dos pecadores não tem força contra aqueles que olham para a cruz, ainda que a concupiscência contra o espírito, que está metida dentro da carne, não tenha sido destruída de tudo ( Ga 5, 16-17 ). Também os crentes se deixam sentir muitas vezes as mordidas da concupiscência, porem quem olha para aquele que foi levantado no madeiro evita a paixão, dissolvendo o veneno com o temor do preceito, como se fosse um antídoto. SOBRE A VIDA DE MOISÉS: SEGUNDA PARTE CAPÍTULO 43.