Gregório de Nissa: demônios

Como mais uma vez se originasse no povo uma rebelião para conseguir o poder, e alguns tentassem pela força que fosse transferido para eles o sacerdócio, ele suplicou uma vez mais a Deus pelos que pecavam, porem o rigor do juízo divino foi mais forte que a compaixão de Moisés por sua gente. A terra, que por vontade divina se abrira como uma boca, fechou-se novamente sobre si mesma, tragando totalmente todos os que se opunham a autoridade de Moisés; aqueles que se haviam envolvido em intrigas para alcançar o sacerdócio, devorados pelo fogo em número próximo de duzentos e cinqüenta, com sua desgraça ensinaram sensatez ao povo (Nm 16, 1-35). Para que os homens se persuadissem mais de que a graça do sacerdócio é concedida por Deus aos que são dignos, Moisés fez com que os homens principais de cada tribo trouxessem bastões, marcados cada um com o sinal de seu dono. Entre estes se encontrava o do sacerdote Aarão. Tendo colocado os bastões diante do santuário, neles mostrou ao povo o desígnio de Deus no que diz respeito ao sacerdócio: dentre todos, somente o báculo de Aarão floresceu e produziu fruto do lenho, – o fruto era uma noz -, e o levou ao amadurecimento (Nm 17, 16-24). Mesmo para os que não criam pareceu um enorme prodígio que o que estava seco, sem casca e sem raiz, se tornasse fértil de repente, e que realizasse o que realizam as plantas com raízes, fazendo, o poder divino, para o lenho as vezes da terra, córtex, umidade, raiz e tempo. Depois disto Moisés, guiando o exército entre povos estrangeiros que se opunham à sua passagem, promete com juramento que o povo não atravessaria suas lavouras nem seus vinhedos, mas que seguiria o caminho real, sem desviar-se nem para a direita nem para a esquerda. Como nem assim se aquietassem os inimigos, vencendo seu adversário em combate, faz-se dono do caminho (Nm 20, 17). Então certo Balac, que dominava sobre o povo mais importante, -madianitas era o nome desse povo-, compadecido da sorte dos vencidos e imaginando que padeceria as mesmas coisas por parte dos israelitas, não leva em sua ajuda nenhum contingente de armas ou de pessoas, mas a arte da magia através de certo Balaam, o qual tinha fama de ser versado nestas coisas e, segundo a convicção daqueles que o haviam procurado, tinha certo poder nesta atividade. Sua arte era a da adivinhação, porem com a ajuda dos demônios era temível, fazendo cair males incuráveis sobre os homens com poder mágico (Nm 22, 2-8). Este, enquanto segue aos que o conduzem ao rei do povo, conhece pela voz da jumenta que o caminho não lhe seria favorável. Depois conhecendo por uma visão o que devia fazer, descobriu que sua magia era demasiado débil para causar dano àqueles que estavam acompanhados por Deus na luta. Balaam possuído pela inspiração divina em lugar da energia dos demônios, disse palavras tais que claramente são uma profecia das melhores coisas que lhes sucederia mais adiante aos israelitas. Ao ser impedido de utilizar sua arte para o mal, tomando então consciência do poder divino, afastou-se da adivinhação e se fez intérprete da vontade divina (Nm 22, 22-24). Depois disto, os estrangeiros foram exterminados pelo povo em um combate contra eles; este por sua vez resultou vencido pela paixão da incontinência pelas cativas. Finéias atravessou com uma só lança aos que estavam entrelaçados na ignomínia; então teve descanso a cólera de Deus contra aqueles que se haviam deixado arrastar às uniões ilícitas (Nm 25, 1-9). Finalmente, o Legislador, subindo a um monte e contemplando de longe a terra que estava preparada para Israel segundo a promessa feita por Deus aos pais, abandonou a vida humana sem haver deixado sobre a terra nenhum sinal, nem uma recordação de seu trânsito com algum monumento funerário. O tempo não havia maltratado sua formosura, nem havia obscurecido o fulgor de seus olhos, nem havia debilitado a graça resplandecente de seu rosto (Dt 34,1-7), mas permaneceu sempre idêntico a si mesmo e, desta forma, conservou, mesmo na maturidade, a imutabilidade na beleza. Expus para ti em grandes traços quanto aprendemos sobre a história do homem em seu sentido literal, ainda que também tenhamos alargado necessariamente o discurso naquelas coisas em que de algum modo havia razão para isso. Talvez já seja tempo de aplicar a vida que acabamos de recordar ao objetivo a que nos propusemos em nosso discurso com o fim de obter alguma utilidade para a vida virtuosa. Retomemos pois o começo do relato desta vida. HISTÓRIA DE MOISÉS 11.

Se chegasses a saber que a vida de um sacerdote é doce, folgada e cor de rosa, como aqueles que se vestem de linho e púrpura e engordam em mesas esplêndidas (Lc 16, 19), que bebem vinho filtrado, estão ungidos com o melhores perfumes e reúnem para si tudo o que parece suave ao gosto superficial dos que desfrutam de uma vida mole, poderias aplicar com toda exatidão o dito evangélico: olhando o fruto, não reconheço a árvore sacerdotal, pois um é o fruto do sacerdócio e outro muito diferente este (Lc 6, 43-44). Aquele fruto é a continência, este é a moleza; aquele não está alimentado por umidade terrestre, a este regam muitos arroios de prazeres daqui de baixo, graças aos quais nesta hora o fruto de vida se colore de rosa. Uma vez que o povo se tenha purificado também desta paixão, atravessa a vida estrangeira guiando-o a Lei pelo caminho real, sem desviar-se de um lado ou de outro (Nm 20, 17). É perigoso para o caminhante desviar-se para qualquer lado. Quando dois precipícios se estreitam no caminho de um rompente elevado, é perigoso para quem marcha por ele desviar-se para uma parte ou outra, pois o abismo do precipício traga igualmente a quem se desvia de um lado ou de outro; assim a Lei quer que quem segue suas pegadas não abandone o caminho, o qual, como diz o Senhor, é estreito e empinado (Mt 7, 14), isto é, que não se desvie nem à esquerda, nem à direita. Esta palavra, ao definir que as virtudes se encontram no meio, contem este ensinamento: todo vício nasce ou por falta ou por excesso no fazer em relação à virtude. Assim com respeito ao valor, a covardia é uma falta de virtude, e a temeridade um excesso: o que está livre destes extremos se encontra situado no meio dos vícios que se encontram em seus flancos. Isto precisamente é a virtude. Da mesma forma todas as demais coisas se encontram, em sua relação com o bem, no meio de vizinhos perigosos. A sabedoria ocupa o lugar intermediário entre a astúcia e a candura: nem a astúcia da serpente é aprovada, nem a candura da pomba, se tomarmos cada uma delas separadamente em si mesma (Mt 10, 16), pois a virtude consiste na disposição intermediária que modera estas duas. O que está falho de temperança é um libertino, enquanto que quem se excede em sua prática cauteriza a própria consciência, como declara o Apóstolo (1Tm 4, 2): um, de fato, se entregou voluntariamente aos prazeres, enquanto o outro sente horror ante o matrimônio, como se fosse adultério. A disposição intermediária entre estes dois é a temperança. Posto que, como diz o Senhor, este mundo está sob o poder do maligno (1Jo 5, 19), e para quem segue a Lei tudo quanto se opões à virtude – isto é, a maldade – lhe resulta estranho, aquele que marcha através deste mundo levará a bom termo durante sua vida este caminho da virtude, se não perder a grande estrada, pisada e abrandada pela virtude, sem desviar-se pelo vício para caminhos impraticáveis que estão aos lados. Como já foi dito, a tentação do adversário – que, em qualquer situação, encontra ocasiões para desviar-nos para o mal – cresce juntamente com o progresso da virtude. Na hora que o povo cresceu muito na vida segundo Deus é quando o inimigo tenta atacar com outra forma de tentação segundo o uso de melhores estratégias. Estes quando julgam difícil vencer a frente do exército do inimigo, superior em forças, o combatem com emboscadas e enganos. Por esta razão, a estratégia do mal não apresenta frontalmente sua força contra aqueles que estão robustecidos pela Lei e a virtude, mas realiza a tentação veladamente, com emboscadas. Chama agora a magia como aliada para atacar. O relato diz que era um adivinho e um investigador do vôo das aves, o qual tinha um poder daninho contra os adversários, sem dúvida por alguma força dos demônios. Este estava sendo pago pelo chefe dos madianitas para danar com maldições os que viviam para Deus, porem trocou a maldição em benção (Nm 22, 2-35). Nós, por coerência com nossa exegese anterior, interpretamos que nem sequer a magia tem força contra quem vive na virtude; quem está fortalecido pela ajuda de Deus vence toda tentação. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 45.

O fato de que o investigador do vôo das aves, que mencionamos, praticava a magia é atestada pelo relato quando diz que tinha o poder de fazer vaticínios na mão e de consultar através das aves e, antes disso, que havia conhecido pelo zurro da jumenta o concernente à rivalidade que tinha diante. A Escritura apresentou o zurro da jumenta como uma palavra articulada, porque ele habitualmente consultava com uma força diabólica as vozes dos animais. Mostra-nos com isto que quem está enredado com este engano dos demônios chega inclusive a tomar como uma palavra racional o ensinamento que encontra na observação dos sons dos irracionais. Ao escuta-la, compreendeu por aquelas mesmas coisas em que havia errado, que era invencível a força contra a qual o haviam alugado. Também na narração evangélica a turba de demônios chamada legião (Mc 5, 9 e Lc 8, 30), se prepara para se opor ao poder do Senhor. Porem quando se aproxima Aquele que tem o poder sobre todas as coisas, a horda proclama seu poder excelso e não oculta a verdade: que este é a força divina, e que em tempo vindouro infligirá o castigo aos pecadores. Pois diz a voz dos demônios: Sabemos quem és: o Santo de Deus, e que vieste antes do tempo a atormentar-nos (Mc 1, 24; 5, 7 e Lc 4, 34-35). Isto é o que sucedeu também então: o poder demoníaco que acompanhava o mago ensinou a Balaan que o povo era invencível e invulnerável. Harmonizando este relato com as coisas que já explicamos, dizemos que quem quer maldizer os que vivem na virtude não pode pronunciar nenhuma palavra hostil nem discordante, mas converte sua maldição em benção. Isto significa que a afronta da difamação não alcança os que vivem na virtude. Com efeito, como pode ser caluniado de avareza aquele que não possui nada? Como será reprochado de libertino aquele que vive só levando uma vida de anacoreta? De cólera aquele que é manso? De orgulho aquele que é humilde? Ou como se dirigirá qualquer outra critica àqueles que são conhecidos pelo contrário, que têm por finalidade apresentar uma vida inacessível à critica a fim de que, como diz o Apóstolo, nosso adversário se envergonhe não tendo nada que dizer (Tt 2, 8)? Por esta razão disse a voz de quem havia sido feito vir para maldizer: como maldiria àquele que não maldiz o Senhor? (Nm 23, 8), isto é, como acusarei quem não oferece matéria de acusação, já que, por olhar sempre para Deus, leva uma vida inacessível ao pecado? Apesar de haver falado isto, o inventor da maldade não cessa em absoluto seu projeto contra os que tentava, mas muda a insídia para sua forma mais antiga de tentar, tentando atrair a natureza para o mal outra vez por meio do prazer. Com efeito, o prazer é apresentado por todo vício como isca que arrasta facilmente as almas sensuais a cair no anzol da perdição. É sobre tudo por meio do prazer impuro que a natureza é arrastada para o mal sem que se controle. É o mesmo que sucede agora. Com efeito, aqueles que haviam prevalecido sobre as armas, que haviam demonstrado que todo ataque de ferro era mais débil que sua própria força, e que com seu poder haviam feito fugir o exército dos inimigos, estes foram feridos pelos dardos femininos através do prazer. E os que haviam sido mais fortes que os varões se converteram em vencidos pelas mulheres. Com efeito, logo que vieram às mulheres que punham ante eles suas próprias formas em vez de armas, imediatamente esqueceram o ímpeto de seu valor, apagando seu ardor no prazer. Eles estavam em uma situação na qual era natural deixar-se levar à união proibida com estrangeiros. Com efeito, a vizinhança com o mal já era um afastamento da ajuda do bem. Imediatamente a Divindade se levantou em cólera contra eles. Porem o zeloso Finéias não esperou que o pecado fosse purificado por uma decisão do alto, mas ele mesmo se converteu em juiz e verdugo (Nm 25, 1-9). Enchendo-se de ira contra quem se havia deixado levar pela paixão, fez as vezes de sacerdote purificando o pecado com sangue: não com o sangue de algum animal inocente, que não tivera parte na imundície da intemperança, mas com o dos que se haviam unido entre si no pecado. Sua lança deteve o movimento da justiça divina ao atravessar de um só golpe os corpos dos dois, mesclando com a morte o prazer dos pecadores. Parece-me que o relato propõe aos homens um ensinamento útil à alma. Através dele aprendemos que, sendo muitas as paixões que se opõem à razão do homem, nenhuma outra paixão tem tanto poder contra nós que possa igualar a enfermidade do prazer. Pois o fato de que aqueles israelitas, que unidos se haviam mostrado mais fortes que a cavalaria egípcia, haviam superado os amalecitas, haviam parecido temíveis ante o povo que lhes era vizinho e depois destas coisas haviam vencido a falange dos madianitas, hajam caído na escravidão da paixão quando viram as mulheres estrangeiras, mostra bem – como dissemos – que a voluptuosidade é para nós um inimigo difícil de combater e de vencer. Tendo vencido imediatamente, só com seu comparecimento, a homens impetuosos com as armas, a voluptuosidade levantou contra eles a bandeira da desonra, publicando sua infâmia à luz do sol. Pois mostrou que os homens, por sua causa, converteram em animais os que o impulso bestial e irracional à impureza convenceu a que esquecessem de sua natureza humana, a ponto de não encobrir sua impiedade, mas gloriar-se com a infâmia de sua paixão e adornar-se com a imundície da vergonha, chafurdando como porcos na lama da impureza, abertamente, à vista dos demais. Que lição tiraremos deste relato? Que sabedores de quanta força para o mal tem a enfermidade da voluptuosidade, mantenhamos nossa vida o mais afastada possível desta vizinhança, de forma que esta enfermidade, que é como um fogo que com sua proximidade acende a chama perversa, não tenha nenhum acesso a nós. Isto é o que ensina Salomão na Sabedoria ao dizer que não se deve pisar a brasa com o pé descalço e que não se deve introduzir fogo no seio (Pr 6, 27-28), pois está em nosso poder permanecer livres de paixão contanto que nos mantenhamos longe de avivar o fogo. Porem se, ao contrário, chegarmos a tocar este fogo ardente, penetrará em nosso seio o fogo da concupiscência, e então se seguirá a queimadura para o pé e a ruína para o seio. INTERPRETAÇÃO MÍSTICA DA VIDA DE MOISÉS 46.