Gregório de Nissa — A Criação do Homem (P.G. 44)
Excertos traduzidos por C. Folch Gomes
“A CRIAÇÃO DO HOMEM”
(cc. 2-5; P.G. 44, 132-137; S.C. 6)
Esta grande e preciosa realidade que é o homem não tivera lugar ainda na Criação. Não seria normal que o chefe fizesse sua aparição antes dos súditos. Só após a preparação de seu reino é que devia ser revelado o rei, quando o Criador do universo tivesse, por assim dizer, preparado o trono de quem iria reinar.
Eis pois a terra, as ilhas, o mar e, sobre eles, a cúpula do céu como um teto. Riquezas de todas as espécies haviam sido colocadas nesses palácios: por riquezas entendo toda a criação, tudo que a terra produz e faz germinar, o universo sensível, vivo, animado e também (incluindo entre essas riquezas as matérias preciosas aos olhos dos homens, tais como o ouro, a prata e as pedras raras) todos estes bens que Deus esconde em abundância no seio da terra, como em celeiros régios.
Deus então faz aparecer o homem neste mundo, para ser o contemplador e senhor das maravilhas do universo; querendo que o uso das mesmas lhe dê a inteligência daquele que lhas concedeu, pois a grandiosa beleza das coisas visíveis deve sugerir-lhe os vestígios do poder inefável e inexprimível do Criador.
Eis per que o homem é trazido por último na criação, não que seja relegado com despreze à última categoria, mas porque, desde seu nascimento, convinha que fosse o rei de todos esses domínios. Um bom dono de casa não introduz seu convidado senão após ter arrumado tudo para a refeição, arranjado e decorado suficientemente a casa e a mesa; então, pronta a ceia, traz o convidado. Da mesma forma, aquele que, em sua infinita riqueza, é o hospedeiro de nossa natureza, decora antes a morada com belezas de toda espécie e prepara este grande festim com iguarias variadas, e só então introduz o homem para confiar-lhe, não a aquisição de bens ainda futuros, mas o gozo do que já se lhe oferece. Assim, criando-o, Deus lança um duplo fundamento para a mistura do divino ao terrestre, e faz que, por essa dupla característica, o homem tenha naturalmente uma dupla fruição: a de Deus, por sua natureza divina; a dos bens terrestres, pela sensação, que é da mesma ordem desses bens.
Precisamos também considerar que, ao pôr os fundamentos do universo e de suas partes constitutivas, o poder divino realiza como que de improvise suas obras, ordenando simplesmente que venham à existência. Para a formação do homem, ao contrário, há antes uma deliberação e, segundo a descrição da Escritura, um plane é estabelecido previamente pelo Criador, determinando o ser vindouro, sua natureza, o arquétipo donde ele trará a finalidade, o gênero de atividade, o exercício de suas potencialidades. A Escritura considera tudo isso antecipadamente, como que mostrando no homem uma dignidade anterior a seu nascimento. Com efeito, ele recebe o comando do mundo antes mesmo de existir: “Deus diz”, conforme as palavras de Moisés, “façamos o homem à nossa imagem e semelhança; que ele governe os peixes do mar, os animais da terra, cs pássaros dos céus, os viventes e toda a terra”.
Coisa espantosa! O sol foi criado sem uma deliberação precedente. O céu também. E, no entanto, nada os iguala na criação. São maravilhas, mas para cuja criação uma palavra é suficiente. A Escritura não indica de onde vêm, nem como surgem. É assim que cada coisa em particular, o éter, os astros, o ar, o mar, a terra, os animais, as plantas, e todos os seres, vêm, por uma palavra, à existência. Somente para criar o homem o Autor do universo se adianta com circunspecção: prepara inicialmente a matéria que o comporá, configura-a à beleza de um arquétipo, depois, segundo a finalidade que lhe compete, compõe-lhe uma natureza conforme com ele e relativa às atividades humanas, que em seu divino plano lhe prefixou.
Os artistas terrenos imprimem aos instrumentos a forma correspendente ao uso que deles farão. Assim também o melhor dos artistas fabrica nossa natureza como uma criação adaptada ao exercício da realeza. E pela superioridade devida à alma, e até pela aparência do corpo, ele dispõe tudo de tal maneira que o homem esteja apto ao exercício de um poder régio. Esse caráter régio, com efeito, que o eleva muito acima das outras condições, a alma espontaneamente o manifesta por sua autonomia, por sua independência, pelo fato de, em sua conduta, ser ela dona de seu próprio querer. De que é próprio tudo isto, senão de um rei?
Acrescentai ainda que sua criação à imagem da natureza divina mostra precisamente ter ele desde o princípio uma natureza regia. De acordo cem o uso comum, os retratistas dos príncipes, além da representação dos traços, exprimem a dignidade real pelas vestes de púrpura e confeccionam uma imagem tal que nos leva a dizer: “é o rei”. Assim a natureza do homem, criada para dominar o mundo, devido a sua semelhança cem o Rei universal, foi feita como uma imagem viva que participa do Arquétipo pela dignidade e pelo nome: a púrpura não a envolve, não há cetro ou diadema para significar sua dignidade (o próprio Arquétipo não os tem), mas em lugar de púrpura ela está revestida da virtude, a mais real das vestes; em lugar de cetro, ela tem o apoio de uma feliz imortalidade; em lugar de diadema real, traz uma coroa de justiça, de sorte que tudo nela manifesta sua dignidade regia, por sua exata semelhança cem a beleza do Arquétipo. A beleza divina não é o resplendor externo de uma bela aparência; ela consiste na indizível bem-aventurança de uma vida perfeita. Assim como os pintores, ao representarem uma personagem sobre a tela, arranjam as tintas e cores segundo a natureza do tema que pretendem retratar, imaginai igualmente aquele que nos modela: as cores, quanto à sua beleza, são aqui as virtudes que ele deposita e faz florir em sua imagem para manifestar o poder que lhe pertence. A variada gama de cores postas nessa imagem, e que representam verdadeiramente a Deus, nada tem a ver com o vermelho, o branco ou outra mistura de cores, com o negro que serve a escurecer as sobrancelhas e os olhos, e cuja dosagem certa põe em relevo a sombra cavada pelos traços; nada tem com o que os pintores pudessem inventar. Em lugar de tudo isto, pensai na pureza, na liberdade espiritual, na bem-aventurança, no afastamento de todo mal, e em tudo o mais que pode formar em nós a semelhança com a Divindade. Foi com tais cores que o Autor de sua própria imagem desenhou nossa natureza.
Se considerais outros caracteres da beleza divina, vereis que também quanto a eles se conserva uma semelhança na imagem que nós somos. A Divindade é Espírito e Verbo: “No começo”, de fato, “era o Verbo”. E segundo Paulo, os profetas “têm o Espírito de Cristo” falando neles. Ora, a natureza humana não está longe destes atributos: em vós mesmos, vedes a razão e o pensamento, imitação daquele que é em verdade Espírito e Verbo.
Deus é ainda Amor e fonte de amor. João, o sublime, diz: “o amor vem de Deus” e “Deus é amor”. O modelador de nossa natureza pôs também em nós essa característica: “Nisto, diz ele, com efeito, todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”. Portanto, se o amor está ausente, todos os traços da imagem em nós se tornam deformados.
A Divindade, enfim, tudo vê, tudo ouve, tudo perscruta. Vós também, pela vista e pelo ouvido, percebeis as coisas e pelo pensamento podeis examinar e perscrutar o universo.