BIBLIOTECA DE NAG HAMMADI — Códice VII — APOCALIPSE DE PEDRO
Excertos do livro de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois, trad. de Álvaro Cunha
Tradução inédita de J.-D. Dubois (a aparecer in BCNH).
Outro exemplo de escrito ao mesmo tempo gnóstico e cristão, o Apocalipse de Pedro acompanha o movimento polêmico e docetista do tratado anterior, acrescentando-lhe alguns toques apocalípticos. Trata-se ainda uma vez da paixão e da crucifixão de Jesus, que são entregues à meditação e ao encorajamento das "almas imortais", isto é, dos gnósticos perseguidos pela Grande Igreja. A distinção entre ortodoxia e heresia suposta pelo tratado permite situar o documento no século II da história cristã.
Trata-se de três visões de Pedro (p. 72,4-9; 81,3-14; 82,4-16), explicadas pelo próprio Salvador, tal como explica o anjo intérprete do Apocalipse de João (cf. Ap 17, por exemplo). O docetismo é patente: o Salvador nunca sofreu sobre a cruz. E a polêmica também o é: a Grande Igreja combate a comunidade dos destinatários do escrito. Estes, de posse da gnose e certos de suas origens celestes, sabem que retornarão para junto do Filho do Homem, que os vingará de seus inimigos terrenos.
A primeira visão de Pedro (p. 72,1-17) descreve a ameaça de morte por parte dos sacerdotes e do povo, mostrando-nos que eles representam na realidade seis grupos de inimigos dos gnósticos:
Enquanto ele me dizia isso, eu vi os sacerdotes e o povo correndo em nossa direção, com pedras, como se quisessem nos matar. E eu fiquei perturbado com a ideia de que iríamos morrer. E ele me disse isto: "Pedro, eu te disse inúmeras vezes que se trata de cegos privados de guia. Se quiseres conhecer sua cegueira, coloca tuas mãos sobre os botões de tua túnica e dize o que vês". Mas, como não vi nada depois de ter feito isso, disse-lhe: "Não se vê nada". E novamente ele me disse: "Recomeça". Então, veio-me um temor mesclado com alegria, pois eu vi uma nova luz, mais forte do que a luz do dia. Em seguida, ela pousou sobre o Salvador e eu lhe contei o que havia visto.
Os inimigos representam sucessivamente aqueles que começam a crer mas retornam ao erro (p. 73,23-31), os que blasfemam contra a verdade (p. 74,22-30), os charlatães que pretendem possuir o mistério da verdade (p. 76,23-34), aqueles que traficam com a palavra do Salvador (p. 77,23-78,6), aqueles que sofrem ao realizar uma contrafação da verdadeira fraternidade (p. 78,31-79,10) e, por fim, aqueles que reivindicam dignidades episcopais (episcopado ou diaconato), pretextos para ocupar os primeiros lugares (p. 79,22-31).
A segunda visão (p. 81,3-82,3) mostra a crucifixão de Jesus, mas a sequência do texto permite a Jesus estabelecer distinção entre sua aparência carnal externa, a verdadeira crucificada, e sua natureza real de vida superior. Enquanto os adversários acreditam que o estão crucificando, Jesus, o Vivente, pode zombar deles:
Quando ele disse-me isso, eu o vi como se ele estivesse tomado por eles. E eu disse: "O que vejo? Ó, Senhor, és tu apenas que eles pegam e sou eu que tu tomas? E quem é aquele que se rejubila sobre o madeiro e ri? E (quem é) esse outro que eles transpassam nos pés e nas mãos?" O Salvador me disse: "Aquele que tu vês sobre o madeiro, que se rejubila e ri, é Jesus Vivente. Mas aquele que está pregado pelas mãos e os pés é o seu (invólucro) carnal, o substituto, quando eles o tomaram para exemplo, aquele que veio segundo a sua imagem. Olha-o da mesma forma que a mim". Ora, quando eu (o) vi, disse: "Senhor, ninguém te vê. Partamos daqui". E ele me disse: "Eu te disse: deixa os cegos tranquilos. Tu, porém, olha como eles não compreendem o que dizem. Com efeito, o filho de sua glória foi dado em exemplo, no lugar de meu Servidor".
A terceira visão (p. 82,4-83,15) adota o tema ortodoxo da ressurreição de Jesus e o interpreta de modo gnóstico, como reunificação do corpo espiritual de Jesus com a luz do Pleroma celeste:
Ora, eu vi alguém que ia se aproximar de nós, parecendo com ele e com aquele que ria sobre o madeiro. Ele estava escrito (?) com o espírito santo: era o Salvador. Depois uma grande luz os envolve, inefável, enquanto a multidão dos anjos inefáveis e invisíveis os abençoava. E fui eu quem o viu quando eles revelavam aquele que glorifica. Mas ele me disse: "Sê forte, pois a ti foram dados esses mistérios, para que sejam conhecidos por revelação: aquele que eles pregaram é o primogênito, a casa dos demônios o corpo, a armadilha de pedra na qual eles pegaram aquele de Eloim, aquele da-cruz que está sob a lei. Aquele que está perto dele, ao contrário, é o Salvador vivo, o primeiro que eles pegaram e soltaram, enquanto ele se mantém alegre, vendo aqueles que lhe fazem violências dividindo-se (todos) entre si. É por causa disso que ele ri de sua cegueira, porque ele sabe que se trata de cegos de nascença. É por isso que aquele que sofre se tornará o corpo, o substituto. Mas aquele que eles soltaram é o meu corpo incorporai. Ora, eu sou o Intelecto-Espirito, cheio de luz irradiante, aquele que tu viste vir a mim, nosso pleroma. Eu sou as forças intelectivas, eu, que caso a luz perfeita com meu espírito santo.
Enfim, é o dualismo subjacente ao pensamento gnóstico que determina a interpretação docetista da paixão e da ressurreição de Cristo. Incapaz de aproximar o mundo transcendente e o mundo terreno, definitivamente corrompido, o Salvador só poderia ter vivido encarnação de comédia e aparência. O mito gnóstico mais geral de um Salvador que veio salvar as centelhas de luz caídas na matéria serve de fundo a essas meditações sobre Cristo, salvador cristão, passando por semelhante de carne e zombando daqueles que se enganam a seu respeito, considerando-o como realmente encarnado. Roberto Pla: Evangelho de Tomé - Logion 87 No relato segundo o Apocalipse (gnóstico) de Pedro, o apóstolo, que supostamente contempla a Jesus cravado na cruz, descreve a Jesus como uma tricotomia hílico-psíquico-pneumático, com o último binômio só perceptível para os que veem, para os que receberam o Mistério do Reino de Deus. Esta divisão ternária de Jesus, e como se verá, quaternária em certo sentido, só é possível a título de análise teórica, mas ainda assim, tem validez e, por extensão, é aplicável a todo homem, posto que a estrutura geral é, salvas as distinções, idêntica.
Eis aqui o ponto de partida do relato de Pedro: Eu vi vir a nós — diz — um que se parecia a Ele (Jesus), e também a Jesus o Vivente, o qual ria em pé junto à cruz, como uma imagem (de Jesus) pintada com Espírito santo. E era o Salvador. Havia ali uma grande e inefável luz que os rodeava, e multidão de inefáveis e invisíveis anjos que os louvava.
O texto que explica em termos adequados à categoria universal de Jesus, a composição do homem “completo”, que responde à qualidade específica da cada um dos três reinos do universo segundo o Gênesis: espiritual (Luz), psíquico água: superior e inferior) e material (Terra, ou barro). Estes são, por outro lado, os três níveis da consciência, contemplados em teórica dissolução analítica (quase puramente anatômica), pois o que tenta descrever o autor é um estudo do Cristo “por dentro”.
O primeiro Jesus dissociado que se menciona é Jesus em corpo passível: “aquele Jesus que cravaram na cruz”. Este Jesus temporal é descrito ao longo de vários versículos, como o “primogênito” e como “Casa dos demônios” e o “vaso de pedra” no qual habitam eles, os que cravaram as mãos e os pés deste Jesus. Também é denominado o “homem de Elohim” (o homem que foi plasmado pelos arcontes), pois que é a imagem carnal, o plasma nascido à imagem de Jesus o Vivente. Depois, diz dele que é homem da cruz que está sob a Lei; o que padecerá (em cruz), Jesus corpóreo, o filho de Maria, porquanto o corpo é o “resgate” da salvação humana, o que eles desonram, o filho de sua glória vã.
O segundo Jesus dissociado que se descreve é Jesus o Vivente que ao pé da cruz, revela gozo e ri. Dele se diz: primeiro estava (no corpo) e foi aprisionado, e (logo) foi liberado (deste corpo passível) no caminho do Calvário. Agora está “em pé” e ri porque vê como se dividem entre si os que fizeram o mal. Ri diante de sua cegueira porque são cegos de nascimento e “não sabem o que dizem. A este meu servidor (diácono) (Jesus o Vivente) — diz o Salvador — é a quem queriam desonrar.
Por fim, eu — diz o Salvador -: Eu sou o Espírito só perceptível pelo espírito. Sou o que resplandece pleno de luz; aquele a quem viste vir a mim, e a ti.
O anônimo autor cristão do Apocalipse de Pedro, dispôs a cena da crucificação com uma precisão harmônica prodigiosa. Primeiro, diante de Pedro (o espectador) e sendo uma só coisa com ele mesmo, está a Luz, o Logos. Depois, ao pé da cruz, o Cristo psíquico, a alma bem-aventurada, o Senhor,e por último, mais longe, no cimo do Calvário, pendendo da cruz, o corpo passível de Jesus, o corpo do homem que padeceu.
O Salvador (o Logos), o Senhor e o homem (Jesus) que padeceu constituem três formas de expressão de uma mesma consciência essencial desde o oculto ao manifesto. Isto o explica outro autor gnóstico: “Eu morri — diz o Salvador — mas não em força, senão no manifesto”. Ou o que é o mesmo: “Morri”, não em minha natureza divina, oculta, senão na humana, manifesta (v. Segundo Tratado do Grande Set).
O que anuncia em definitivo o autor anônimo é que a natureza divina e a consciência psíquica de Jesus não se identificam com o corpo passível que foi cravado na cruz. O autor do Atos de João o confirma: “Não sou eu o que estou encima da cruz — diz o Salvador —. Me tomaram pelo que não sou, pois não sou o que era segundo eles.
Ouves que padeci e não padeci; e que sofri e não sofri; que fui ferido e não fui chagado; que estive pendido da cruz e não pendi; que o sangue manou de mim e não manou. Atos de João