Paul Nothomb — O SEGUNDO RELATO
Gen 3,15 E é hostilidade que porei entre ti e a Mulher, e entre tua descendência e a dela, ela te esmagará a cabeça e tu lhe esmagará o calcanhar.
Como Deus, o Deus da liberdade, que deixa o Homem livre em suas decisões, sejam elas desastrosas, e as respeita, pode de pronto anunciar na primeira pessoa que porá hostilidade entre a Mulher e seu espírito lógico, entre a descendência da Mulher (que aprende assim à queima-roupa não somente que ela vai morrer mas vai dar nascimento a futuros mortos, se ela persiste em sua loucura) e o espírito lógico de todos os «seres humanos» a vir? Mas Deus não faz senão constatar a evidência. É em nome da liberdade que deu ao Homem que fala. Esta liberdade que não aceitará jamais, mesmo se a «condição humana» deve durar milênios, as «ukases» do espírito lógico, os argumentos irrefutáveis da experiência provando que tudo tem um fim, que a morte triunfa sempre, que a esperança é vã e o túmulo a única certeza. Cada um convirá, certamente, mas ninguém em seu foro interior nisso crerá, e este conflito ente o que se pensa e o que se vê, entre o bom senso mortífero e inextirpável aspiração à felicidade, à imortalidade, em resumo à liberdade que sente todo descendente da Mulher não cessará de opor a ciência «objetiva» à consciência «subjetiva» enquanto houver homens, e que a Unidade do Homem não será restabelecida na Realidade da origem. Da «cabeça» ao «calcanhar», em conflito com seu espírito lógico «assolado», o indivíduo precário ao longo de sua curta existência estará em estado de hostilidade com ele mesmo, se dará e receberá golpes e ferimentos, se esmagará sem ser esmagado. Tal é a evidência que Deus anuncia. Porque é o Deus da liberdade. Porque está em nós a voz da liberdade.