Paul Nothomb, «Ça ou l’histoire de la pomme racontée aux adultes» [PNHP]
2,21: E Deus fez cair sobre Adão um sono profundo e ele se adormeceu. E ele tomou uma de suas costelas e formou um tecido de carne em seu lugar.
2,22: E Deus levou a costela que tomara de Adão a seu ponto de incandescência e transmitiu esta a Adão.
2,23: E Adão disse: “Isto”, que golpe!
Substância de minha substância, e carne retirada de minha carne!
“Isto” (ou Essa-aí) se chamará “mulher” (isha)
Pois ela foi tomada de alguém (ysih) Essa-aí!
(“Isto” ou “Essa aí” = Zoot em hebreu)
Vimos que a palavra-chave deste nosso relato (Gênesis II), que se encontra cinco vezes, das quais três no monólogo de Adão, precisamente no início, no meio e no fim, é um pronome demonstrativo do gênero feminino mas empregado geralmente no sentido neutro. Ele se pronuncia “zoot”. Até aqui traduzi-o por “isto”. Mas pode-se traduzi-lo também por “isto aí” em dois casos pelo menos segundo o contexto.
Nestes dois casos designa claramente a mulher que o Adão inventa a nomeando como um ser aparte, e a subordinando apesar de sua origem comum. “Esta aí” é portanto uma consequência do “isto” pelo qual o Adão Um e múltiplo se autodegrada em um par de tipo animal, enquanto foi concebido por Deus “afar)) fora da adama”, quer dizer alhures da condição humana, e sem relação com ela, salvo de anterioridade.
Pois “alhures” é o Éden, de onde a criatura imortal “cai” e se torna mortal. Em duas etapas no mito. o “isto” reduz seu espaço a três dimensões, onde podemos nos representar ela, e a saída do jardim transforma seu tempo reversível em irreversível. A princípio ela não pode voltar atrás. Ela é prisioneira do destino e da História.
O par está destinado a se reproduzir para prolongar a aventura humana na perspectiva de um retorno ao Éden, onde encontrará a Unidade e a multiplicidade logo a imortalidade de sua origem. Todavia até aí seus dois membros não estão exatamente no mesmo plano durante sua existência precária. Fisiologicamente é evidente. Mas nosso relato revela uma clara superioridade da mulher sobre o homem em sua relação ao Éden, ao encontro da inferioridade que lhe designa correntemente nossa cultura “sexista”.
Primeiro há o fato que o nome da mulher está ligado àquele da Árvore da Vida, mantida intacta no jardim, de onde desapareceu a Árvore do Conhecimento. Ao abrigo dos “querubins e da espada flamejante” que dela guardam o caminho, não para a interditá-la mas protegê-la.
Em seguida as morfologias respectivas do homem e da mulher na condição humana, se são sexualmente complementares, não são menos simbolicamente diferentes, até opostas. O corpo da mulher tem um sexo que se abre e seis que se oferecem, é acolhedor e generoso. Aquele do homem é agressivo e fechado. A mulher, que pode ser mãe e esposa ao mesmo tempo, sem contar outros papeis frequentes, é a mais polivalente dos dois. Quem evoca melhor o Adão Um e múltiplo da origem?
Para simplificar e tentar mais ou menos representá-lo, pode-se comparar o Adão Um e múltiplo ao andrógino de Platão. Ou a vários andróginos de Platão. Cuja componente masculina poderia se chamar um “pré-homem” e a componente feminina uma “pré-mulher”. A dupla citação da palavra “o Adão” no versículo 2,22 designa, para as necessidades da mise em scène, os dois parceiros que o relato quer fazer “comungar” a fim de ilustrar sua alteridade original. Parece-me evidente que o primeiro do dois, aquele que Deus faz adormecer de um sono profundo e a quem retira uma “costela” (lado) que inflama e leva ao segundo, é uma pré-mulher. Tanto quanto ele lhe cerne “da carne” em lugar da costela retirada. Alusão aos seios (vide tradução do rabino Zadock-Kahn, única linguisticamente correta desta passagem, deformada pela tradição que fala de uma carne determinada, aquela que Deus teria cingido para retirar a costela). A pré-mulher é aqui exonerada de toda responsabilidade, posto que ela só é um objeto na mão de Deus que efetua pessoalmente todas as operações a concernindo. Ao contrário, o segundo personagem, o pré-homem, não é manipulado por Deus. Ele fala. E em seu discurso se anexa a pré-mulher ficada passiva. Não será assim nas cena ulterior ao redor da árvore, onde a Mulher conduz o jogo e seu companheiro fica passivo. Mas a separação já teve lugar, do fato do pré-homem. Logo pode-se dizer que, tornada a Mulher, a pré-mulher mudou do fato do pré-homem, e que ela tem menos que ele em todo caso precipitado a “queda”, mesmo se ela a confirmou.
Uma costela é o que protege o coração, a retirá-la para a dar a outro é um “dom de si” sentimental e físico, que não é apresentado no episódio como um sacrifício mas como um prazer. Pois “Deus” a inflama na passagem antes de aportá-la ao segundo personagem, que é denominado “o Adão” como o primeiro, e que é o “pré-homem” em relação à “pré-mulher” inocente senão inconsciente. Ele não esteve adormecido. Ele fala e dá uma espécie de grito de alegria, que se pode traduzir tão bem por “Isto, que golpe!” quanto por “Isto-aí, que golpe!”.