Henri Crouzel — Orígenes, um teólogo controvertido
ORÍGENES, Un teólogo controvertido, Henri CROUZEL. Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1998, 379 p. ISBN: 84-7914-363-0, traducción española de la edición original en frances: Origène por las Monjas Benedictinas de la Abadía Santa Escolástica de Victoria, Buenos Aires (Argentina). Tradução de Antonio Carneiro das paginas 362 até 374
APOCATÁSTASE
1) No concernente a uma apocatástase incorpórea, a pergunta pode parecer ociosa depois de tudo que dissemos sobre a ressurreição dos corpos. Certamente, um moderno diria talvez que esses corpos etéreos não lhe parecem nada consistentes e que de fato vem a ser uma afirmação da incorporeidade: se assim o fez, substituiria sua própria mentalidade à de Orígenes e não mereceria o título de historiador. A pergunta surge de quatro passagens do Tratado dos Princípios nas que Orígenes, lido na tradução de Rufino, discute entre duas hipóteses: a de um final corpóreo das criaturas racionais, baseando-se em razões escriturísticas, e a de um final incorpóreo, sustentado por razões filosóficas, mas não tira nenhuma conclusão, o que não é raro neste livro. Parece na verdade que Rufino cortou um pouco dessa segunda hipótese, a julgar pelo fato de que fragmentos conservados por Jerônimo não tem neles seus correspondentes. Mas dá conta, no entanto, de ambas hipóteses e do caráter de discussão de ditas passagens. Não se pode dizer o mesmo dos fragmentos traduzidos por Jerônimo: como sua finalidade era colecionar pérolas heréticas, neles suprime quase por completo o contexto da discussão e retém só os textos que falam da incorporeidade, dando a impressão de que Orígenes tenha mantido firmemente a incorporeidade final. Não é negada a ressurreição dos corpos, mas aparece como uma etapa provisória antes da incorporeidade total. Alguém pode se perguntar se Jerônimo não teria lido Orígenes através das opiniões de seu contemporâneo Evágrio Pôntico, já que a dissolução final do corpo glorioso se lê em vários lugares das Kephalaia Gnostica, os textos de Justiniano estão dominados sobretudo pelo origenismo do século VI.
Posto que subsiste oposição entre Rufino, por uma parte, e Jerônimo e Justiniano, por outra, posto que, segundo Rufino, Orígenes cada vez expõe ambas alternativas sem concluir com clareza em favor de uma ou de outra, a única resposta possível poderia se obter estudando as demais obras de Orígenes. Às vezes, é verdade, tem sido aduzido em favor da incorporeidade final um pequeno número de textos, lidos sem levar em conta suficientemente os sentidos diversos que Orígenes dá ao termo corpo: corporeidade terrena, corporeidade etérea, sentido moral da incorporeidade designando uma maneira de viver. Por isso, tais passagens não são significativas, e nas obras, salvo no Tratado dos Princípios, não se acha nenhuma afirmação clara do caráter passageiro, que seria dos corpos gloriosos, e neste livro vai ver somente nas interpretações de Jerônimo. Por outro lado, se lê várias vezes em suas demais obras, diretamente ou por via de consequência, que o estados dos corpos gloriosos é definitivo. Se for possível de se deduzir dos princípios invocados por Orígenes que o corpo glorioso esteja privado dos órgãos ligados ao devenir, então, toda mudança fica excluída. Orígenes chama atenção dos Saduceus que, pela sua maneira de conceber a ressurreição, restauram praticamente a sucessão do mundo atual. Então, se os bem-aventurados estão revestidos de corpos gloriosos que desaparecerão, de golpe ou pouco a pouco, para poder submergir-se na “hénada”, quer dizer, na unidade divina, sempre estão no devenir e na mudança. No Diálogo com Heráclides Orígenes afirma com ênfase que o corpo ressuscitado está ao abrigo da morte:
“De modo algum é possível que o espiritual se torne cadáver nem tampouco se torne insensível: se é possível, com efeito, que o espiritual se torne cadáver, é de temer que depois da ressurreição, quando nosso corpo tenha ressuscitado, segundo diz o Apóstolo: Semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual, morreremos todos. Na verdade, Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morrem mais.”
Ainda que não seja este inteiramente o problema questionado pelas divergências entre Rufino e Jerônimo e Justiniano, o fato de que todas as obras de Orígenes, salvo o Tratado dos Princípios, apresentam como definitivo o estado dos ressuscitados, tem no entanto sua importância. Portanto não se pode atribuir firmemente à Orígenes uma apocatástase incorpórea, ainda que tenha discutido esta hipótese no Tratado dos Princípios ao mesmo tempo que de uma apocatástase corpórea.