VIDE: PASTOR E OVELHAS
CRISTO — PASTOR — PORTA
O que se propõe sob o aspecto de uma parábola retem então nossa atenção. Parábola muito simples e fácil de entender, assim parece. Quanto ao Cristo, ele aparece sob a forma do pastor ou do bom pastor que entretém com suas ovelhas reportes extraordinários. Por um lado, é verdade, a alegoria tornas estes reportes compreensíveis em se referindo àqueles que existem com efeito entre um pastor e as ovelhas de seu rebanho: elas conhecem sua voz e o seguem; quanto ao pastor, «ele chama suas ovelhas cada uma por seu nome» (Jo 10,3). Estas relações que cada um pode observar na vida pastoral se encontram bruscamente arrancadas a seu quadro familiar, não guardam mais deste o princípio de uma possível inteligibilidade. Este princípio, João o situa na relação acósmica e intemporal que existe entre a Vida fenomenológica absoluta e a Ipseidade originária que ela gera em sua autogeração eterna e como a condição desta. Nenhuma arquétipo mundano — nem por conseguinte nenhuma metáfora — não oferece mais qualquer ajuda para a inteligência disto que é aqui é questão, a saber a relação dos filhos ao Arque-Filho, a qual não pode ser compreendida senão à luz da relação mais original do Arque-Filho à Vida absoluta. A interioridade fenomenológica recíproca do Cristo e de Deus, tal é a chave da qual dispõe João para compreender por sua vez a relação dos filhos ao Filho, e esta chave é a única que convém. Se se supõe agora que a relação dos filhos entre eles não ela mesma compreensível senão à luz de sua relação ao Arque-Filho, é a totalidade das relações entre os viventes em geral — que ela concerne os homens, o Cristo ou Deus — que se encontra posta em questão. Esta colocação em questão global da relação entre os viventes, como encontrando seu princípio não no mundo mas somente na Arque-geração da Vida, nós a deixamos provisoriamente de lado para nos concentrar sobre um só de seus aspectos, embora essencial. É aquele que nos interessa precisamente aqui, a saber a relação dos filhos ao Arque-Filho.
Ora esta relação forma precisamente o tema oculto da parábola de João. Nesta, com efeito, o Cristo não intervem somente como pastor das ovelhas, ele é ainda a porta do cercado onde elas se mantêm: «Sou que sou a porta» (Jo 10,9). Se o Cristo é a porta do cercado onde se mantêm as ovelhas, é que o acesso a todo eu transcendental concebível reside na Ipseidade original na qual somente algo como um Si e como um eu é possível. Ora uma tal proposição, que coloca o acesso ao eu em uma Ipseidade mais antiga que ele, faz tremer todo olhar capaz disto perceber as implicações abissais — na medida que precisamente ela visa todo eu transcendental, o meu tanto quanto aquele de outro homem, para não falar aqui senão dos filhos.
No que concerne meu próprio eu, a proposição quer dizer que não tenho acesso a mim mesmo e assim que não posso ser eu mesmo senão passando pela porta do cercado. Eu não eu mesmo e não posso o ser senão através da Ipseidade original da Vida. É a carne patética desta Ipseidade na qual a Vida se junta a ela mesma, é ela que me junta a mim mesmo de tal maneira que seja e possa ser este eu que sou. Logo não posso me juntar a mim mesmo senão através do Cristo, na medida que ele junto a ela mesma a Vida eterna, se fazendo nela o primeiro Si. O reporte a Si que faz de todo eu um eu, é o que o torna possível. É, em linguagem filosófica, sua condição transcendental. É enquanto que ele retira sua possibilidade neste reporta de si a si que o eu é ele mesmo um eu transcendental. O Cristo, porta do cercado onde passam as ovelhas, onde os eus transcendentais são eus transcendentais, o Cristo é a condição transcendental deles. Jamais nenhum eu transcendental não seria dado a ele mesmo, jamais ele não chegaria constantemente em Si, ser um Si se a Ipseidade fenomenológica original do Primeiro Si da Vida não lhe fornecesse a substância de sua própria ipseidade. Assim não há de Si, quer dizer de reporte a si, senão no primeiro reporte a si da Vida e no Si deste primeiro reporta. Nenhum si não é possível que não tenha como sua substância fenomenológica, como sua carne, a substância fenomenológica e a carne do Arque-Filho.
Extraordinária é então a hipótese formulada pela parábola, aquela de alcançar um eu qualquer, o meu ou aquele de um outro, sem passar pela Ipseidade essencial da qual este eu tem sua possibilidade. O que uma tal hipótese põe em causa , é preciso bem o ver, é nada menos que o conjunto das intuições fundamentais do cristianismo, aquelas que concernem a autogeração da vida como geração de uma Ipseidade original na qual somente todo eu transcendental vivente se edifica por sua vez enquanto Filho de Deus e “Filho no Filho”. ”Haveria um vivente que se passa da vida, um eu sem a Ipseidade original de um Si nele?
O texto joanico conhece então suas maiores tensões, a cólera do Cristo explode, semelhante àquela que Rubens pintou sobre o quadro de Bruxelas quando, brandindo nas nuvens, tendo o raio em sua mão e o brandindo acima do mundo, ele se prepara para destruí-lo: «Aquele que não entra pela porta do cercado das ovelhas mas escala sobre um outro ponto, aquele é um ladrão e um bandido» (Jo 10,1). E é então a declaração estupenda: «Todos aqueles que vieram antes de mim são ladrões e bandidos» (Jo 10,8). Ninguém veio antes do Cristo. «No princípio era o Verbo»; «Antes que Abraão fosse, Eu sou» (Sinal de Abraão); «Davi o chama Senhor» (Sinal da Cruz). Ora não estão aí, lembremos, simples afirmações. Trata-se de proposições fenomenológicas de uma validade apodítica e das quais dissemos que quem quer que perceba o estado das coisas que elas visam é obrigado a afirmá-las. Ninguém veio antes do Cristo quer dizer que ninguém poderia vir antes deles, e isso porque nenhum eu não é possível exceto na Ipseidade que engendra o a Vida absoluta em se experienciando a si mesma no seu auto-afeto que não porta uma ipseidade nela como isto sem o que ela não se cumpriria jamais. Assim como eus, aqueles que acedem a eles mesmos e se amparam de seu ser próprio ou ainda aqueles que acedem aos outros e estão em reporte com eles — esses, todos esses não fazem em nenhum momento a economia da ipseidade que os dá a eles mesmos, lhes permitindo assim de ser eus. O que quer que ele diga ou faça, todo eu já fez uso nele de uma ipseidade no poder do qual ele não entra para nada, ele já se apropriou disto que não lhe pertence: é um ladrão e um bandido. Ladrões e bandidos são aqueles, todos aqueles que não dobraram o joelho diante isto que neles os deu a eles mesmo, que entraram no cercado onde pastam as ovelhas sem passar sob o Arco triunfal, escalando a paliçada de maneira vergonhosa, na noite de sua cegueira. Em quais condições se produz e pode se produzir um tal roubo, em qual noite? Qual espécie de cegueira o acompanha e o torna possível, é isto que será questão. Por momento, neste ponto onde nos conduziu a análise fenomenológica, importa medir que formidável pensamento do indivíduo porta nele o cristianismo, mesmo se, sobretudo se, do ponto de vista filosófico, este aporte permanece ainda amplamente inexplorado.