CASSIANO — CONFERÊNCIAS
PRIMEIRA CONFERENCIA DO ABADE MOISÉS — DA META E DO FIM DO MONGE
XII. Pergunta sobre a perseverança da “theoria” espiritual (contemplação)
Germano: Quem é que pode ser sempre tão preso a essa contemplação, na fragilidade da carne, que nunca pense na chegada dum irmão, na visita de um doente, no trabalho manual, ou na hospitalidade devida aos peregrinos ou a pessoas que chegam? E, afinal, quem não é solicitado a prover as necessidades e cuidados do corpo? Muito gostaríamos de aprender como e em que medida pode a mente unir-se a esse Deus invisível e incompreensível.
XIII. Resposta sobre a orientação do coração para Deus e sobre o reino de Deus e do demônio
Unir-se a Deus sem interrupção e ficar-lhe inseparavelmente unido pela contemplação, como dizeis, é impossível ao homem na fragilidade da carne.
Mas precisamos de saber onde devemos ter fixa a intenção da nossa mente e para qual objetivo reconduzir constantemente o olhar da nossa alma. Se a mente puder guardá-la, alegre-se; se se deixar distrair, deplore e suspire.
E saiba que dacaíu do bem supremo, todas as vezes que se surpreender esquecida daquela contemplação. Julgue ser uma prostituição todo afastamento, ainda que momentâneo, da contemplação do Cristo. Quando, pois, o nosso olhar se desviar dele um pouco, voltemos de novo para ele os olhos do coração e reapliquemos como em linha reta a força da mente.
Tudo, na verdade, se tem na profundeza da alma. Se daí foi expulso o diabo, e se os vícios não mais aí reinam, consequentemente se funda em nós o reino de Deus, como diz o Evangelista: “O reino de Deus não vira de modo visível. Não dirão: ei-lo aqui ou ali. Em verdade, eu vos digo, o reino de Deus esta dentro de vós”(Lc 17 20-21).
Ora, dentro de nós, não pode existir senão o conhecimento ou a ignorância da verdade e o amor dos vícios ou da virtude, pelos quais preparamos em nosso coração um reino para o diabo ou para o Cristo. O Apóstolo, por sua vez, assim descreve a qualidade desse reino: “O reino de Deus não é comida ou bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rom 14,17).
Se, portanto, o reino de Deus está dentro de nós, e se ele é justiça, paz e alegria, quem mora nessas virtudes, está, sem dúvida, no reino de Deus. E, pelo contrário, quem vive na injustiça, na discórdia e na tristeza que produz a morte, está no reino do diabo, no inferno e na morte, pois é por esses indícios que se discerne o reino de Deus ou do diabo.
E, de fato, se, elevando o olhar da mente, considerarmos aquele estado em que vivem as potencias celestes que estão verdadeiramente no reino celeste, como é que devemos julgá-lo, senão a perpétua e contínua alegria ? Que é, pois, mais próprio e mais conveniente à verdadeira bem-aventurança, do que a tranquilidade constante e a alegria eterna?
E para aprenderes com maior certeza que assim é como dizemos, não por minha conjetura, mas pela autoridade mesma do Senhor, escuta-o descrevendo claramente a natureza e o estado daquele mundo: “Eis que eu creio novos céus e uma nova terra; as coisas antigas não serão mais lembradas, nem subirão mais ao coração. Mas gozareis de uma alegria e exultação eterna no que eu criar” (Is 65,17-18). E ainda: “Nela se encontrarão o gozo e a alegria, ação de graças e cantos de louvor. E isto será de mês a mês, de sábado a sábado” (Is 51,3; 66,23). E mais uma vez: “A alegria e a exultação eles terão, a dor e o gemido fugirão” (Is 35,10).
Se desejais conhecer com clareza ainda maior o que são a vida e a cidade dos santos, prestai atenção ao que diz a voz do Senhor, falando a Jerusalém: “Eu te darei por visita a paz e como autoridades a justiça. Não se ouvirá mais falar de iniquidade em tua terra, nem de devastações e de ruínas em tuas fronteiras, e a salvação cobrirá teus muros e o louvor as tuas portas. Para ti não mais o sol para luzir durante o dia, nem o esplendor da lua te iluminará, pois o próprio Senhor será a tua luz eterna, e Deus a tua glória. Teu sol não se porá, e tua lua não diminuirá, mas o Senhor será uma luz sempiterna, e terminarão os dias do teu luto” ( Is 60,17-20).
Por isto, o santo Apóstolo não declara que qualquer alegria, de um modo geral é simplesmente, seja o reino de Deus, mas somente aquela que é no Espírito, como ele assinala a específica (cf. Rom 14,17). Ele sabe que existe uma outra alegria, que e censurável, da qual se diz: “Este mundo se alegrará” (Jo 16,20), e ainda: “Ai de vós que rides, porque chorareis” (Lc 6,25).
O reino dos céus, sem duvida, deve ser entendido em três sentidos: ou que os céus, isto é, os santos, hão de reinar sobre os outros homens submetidos a eles, conforme esta palavra: “Tu governarás cinco cidades e tu a dez” (Lc 19,19 e 17), e esta outra dirigida aos discípulos : “Assentar-vos-ei sobre doze tronos e julgareis as doze tribos de Israel” (Mt 19,28). Outro sentido é que os próprios céus tornar-se-ão o reino de Cristo, quando tudo lhe será submetido e Deus começar a “ser tudo em todos” (1 Cor 15,28). Ou, enfim, que os santos reinarão nos céus com o Senhor.