Cassiano Collatio XVI-27

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE

XXVII. Como reprimir a ira.

Devemos, pois, conter todos os movimentos da cólera, e moderá-los pelo governo da discrição, para não cairmos naquele arrebatamento furioso que Salomão condena: “O ímpio explode toda a sua cólera, mas o sábio a distribui por partes” (Prov 29,11), isto é, o insensato perturbado pela raiva, se inflama à sua vingança, mas o sábio, pela madureza do seu conselho e moderação, a atenua e expele pouco a pouco.

Tal é também a palavra do Apóstolo: “Não vos vingueis por vós mesmos, mas dai lugar à cólera” (Rom 12,19), o que significa: Não corrais à vingança, sob a pressão da ira, mas dai lugar à cólera. Isto quer dizer: Não deixeis os vossos corações se apertarem na estreiteza da impaciência e da pusilanimidade, de tal modo que não possam sustentar a tempestade violenta da comoção, quando ela se desencadear. Ao contrário, dilatai-os, recebendo nos largos espaços da caridade as vagas adversas da raiva, pois a caridade “tudo sofre, tudo aguenta” (1 Cor 13,7).

Deste modo, tenha a vossa alma, dilatada pelos espaços da longanimidade e da paciência, recessos salutares de conselho, onde a horrível fumaça da cólera, recebida e difusa, encontre, por assim dizer, uma saída e logo se desvaneça.

Pode-se também compreender a coisa da maneira seguinte. Damos lugar à ira, toda vez que cedemos, de coração humilde e tranquilo, à agitação do outro, e, confessando-nos de alguma forma dignos de todas as injúrias, nos submetemos à impaciência exasperada.

Há, no entanto, os que assim tomam o sentido da perfeição apostólica: dar lugar à ira consiste, segundo a sua opinião, em afastar-se do que está enraivecido. A mim, porém, parece que isto leva mais a entreter o fogo das rixas, do que a cortá-las.

A cólera do próximo, é preciso vencê-la imediatamente, por uma humilde satisfação; a fuga a provoca, mais do que a evita.

Outra palavra de Salomão, semelhante à precedente, nos diz: “Não te apresses em teu espírito a te encolerizares, porque a ira repousa no seio dos insensatos” (Ecles 7,9). E ainda: “Não corras depressa à briga, para que não te arrependas no fim” (Prov 25,8).

Condenando, é verdade, a prontidão na disputa e na cólera, não quer dizer que ele lhes aprove a lentidão. Deve-se igualmente acolher a palavra seguinte: “O insensato manifesta na mesma hora a sua ira, enquanto o homem astuto encobre a sua ignomínia” (Prov 12,16).

Decidindo que o sábio deve ocultar a paixão vergonhosa da ira, ele culpa a rapidez da cólera, mas não sem proibir também a sua lentidão. Se ele achou que a ira deve ser ocultada, ao irromper por força, da fraqueza humana, é para que, sabiamente escondida na hora, desapareça para sempre.

Esta é, com efeito, a natureza da ira: adiada, ela enfraquece e morre; manifestada, ela se inflama cada vez mais.

Que os corações, portanto, se dilatem e se abram, para que, apertados pela estreiteza da pusilanimidade, não os encham os ardores turbulentos da cólera. Pois não podemos acolher num coração estreito aquele mandamento divino que, segundo o profeta, e infinitamente largo, nem, ainda, dizer com o profeta: “Eu corri no caminho dos teus mandamentos, porque dilatáveis o meu coração” (Sl 118,32).

Que a longanimidade seja uma sabedoria, evidentíssimos testemunhos da Escritura no-lo ensinam: “O varão longânime é grande na prudência, o pusilânime é muito insensato” (Prov 14,29). Por isso, lembra a Escritura aquele que pediu ao Senhor o dom da sabedoria: “E Deus deu a Salomão uma enorme sabedoria e prudência, e um coração largo como as areias sem número do mar” (3 R 4,29).