CASSIANO — CONFERÊNCIAS
CONFERÊNCIA XVI — PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE JOSÉ SOBRE A AMIZADE
XXI. Pergunta: Como podem, apesar de obedecer aos mandamentos do Cristo, ser frustrados da perfeição evangélica?
Germano: Como censurar aquele que, satisfazendo ao preceito evangélico, não somente deixa de a- plicar a pena de talião, mas também está pronto a sofrer uma injúria renovada?
XXII. Resposta: O Cristo observa não só o fato, mas também a vontade.
Josó: Como dissemos há pouco, é preciso considerar não só o ato que se pratica, mas também a disposição de espírito e a intenção do seu autor.
Assim, pois, se, no íntimo do vosso coração, pesais bem o ânimo e os sentimentos que animam as ações de alguém, vereis que é de todo impossível realizar a virtude da paciência e da brandura com um espírito contrário, a saber, um espírito de impaciência e de furor.
Nosso Senhor e Salvador, ao nos instruir para uma virtude profunda de paciência e brandura, encerrada no santuário íntimo da nossa alma e não apenas trazida nos lábios, nos deu esta fórmula de perfeição evangélica: “Se alguém te bater na tua face direita, apresenta-lhe também a outra”. (Subentenda-se, com certeza, a palavra “direita”). Ora, esta outra face direita, por assim dizer, só pode ser entendida do homem interior. O Senhor deseja, assim, extirpar das mais recônditas profundezas da alma a própria raiz da cólera. Equivale a dizer que, se o homem exterior receber em sua face direita o ataque dum agressor, o homem interior deve, por sua vez, oferecer a sua direita à afronta, consentindo humildemente à agressão.
Ele partilha, então, do sofrimento do homem exterior, entregando, de algum modo, e submetendo o seu corpo à injúria que o agride, a fim de que o homem interior não se abale, nem mesmo em silêncio, com o golpe sofrido pelo exterior.
Vedes, pois, que eles estão muito longe da perfeição evangélica, que nos ensina a guardar a paciência, não por palavras, mas pela tranquilidade interior do coração. Ela nos ordena que a conservemos quando algo de contrário nos acontece, de tal modo que não só nos mantenhamos alheios à perturbação da cólera, mas também possamos, cedendo à injúria, levar à tranquilidade aqueles que se deixaram abalar por seu vício. Des te modo, vencemos por nossa brandura o seu furor.
Com isto cumprimos igualmente o conselho do Apóstolo: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal pelo bem” (Rom 12,21). É o que não podem, com toda certeza, cumprir, aqueles que, num espírito de orgulho, proferem palavras de doçura e de humildade e, assim, longe de apagar o incêndio da cólera, ainda mais o acendem tanto no seu, como no coração do irmão agastado. Ainda que pudessem eles, de algum modo, permanecer mansos e tranquilos, nem assim, no entanto, colheriam alguns frutos de justiça, pois reivindicam para si, à custa do próximo, a glória da paciência. Por este fato, eles se tornam absolutamente estranhos à caridade recomendada pelo Apóstolo, a qual “não busca o seu próprio interesse” (1 Cor 13,5), mas o dos outros. Ela não procura enriquecer-se, tirando proveito do prejuízo do próximo, nem adquirir alguma coisa, à custa da nudez alheia.