Cassiano Collatio XIV-7

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL

VII. Exemplo de castidade, mostrando que nem todas as práticas devam ser imitadas por todos

Além do prejuízo ao qual se expõe o monge que por leviandade ambiciona passar a outros exercícios diversos do seu, ele ainda incorre num perigo de morte, porque, muitas vezes, o que alguns fazem corretamente, é tomado por outros como mau exemplo, e o que para muitos teve êxito, é por outros experimentado como nocivo.

Para dar um exemplo, é como se alguém quisesse imitar a virtude de certo homem que o abade João costuma citar, não como modelo a imitar, mas como causa de admirar.

Um dia, veio alguém ao referido ancião, e vestia roupa secular. Trazia-lhe algumas primícias de suas colheitas. Ele encontra ali um possesso atormentado por um dos mais ferozes demônios. Este, desprezando as ordens e adjurações do abade João, atestava que jamais sairia do corpo, por sua ordem. Mas, a chegada dequele homem, ele se encheu de terror e, gritando o seu nome com a maior reverência, se afastou.

Admirando-se, não pouco, de graça tão evidente, e ainda mais estupefato porque o via em trajes seculares, o ancião começou a indagar cuidadosamente sobre o seu modo de vida e profissão.

Quando ele disse que era um secular e casado, o bem-aventurado João, revolvendo em sua mente a excelência de tal virtude e graça, procurava reconhecer com maior atenção o gênero de vida que era o seu.

Ele afirmou que era homem do campo e que tirava a própria subsistência do trabalho de suas mãos. No mais, não via em si nenhum bem, a não ser que nunca deixava de ir a igreja, antes de partir para o trabalho no campo e, de tarde, antes de voltar para casa, para dar graças a Deus por lhe prodigalizar o pão cotidiano. Jamais, também, tomava alguma coisa do que colhia, antes de oferecer, primeiro, a Deus as primícias e os dízimos; nunca, também, conduzia os seus bois perto das lavouras alheias, sem lhes pôr focinheira, a fim de que o próximo não sofresse nenhum prejuízo por seu descuido.

Em tudo isso, entretanto, o abade João não via o suficiente para uma graça tão grande que, a seus próprios olhos, punha esse homem a frente de si. Assim, procurava saber dele o que é que podia ser cotejado com tão alta graça.

Diante da indagação tão insistente, e coagido pela reverencia, ele confessou que, doze anos antes, quando queria fazer-se monge, foi obrigado por seus pais a contrair matrimônio. Tomou mulher, mas a guardava como irmã, respeitando a sua virgindade, sem que ninguém até então soubesse disto.

Ao ouvir isto, o ancião se viu tomado pela maior admiração. Na presença do homem, ele não se conteve e proclamou, de publico, que não fora sem motivo, que o demônio, que o havia desprezado, não suportara a presença daquele. Sua virtude, continuou o ancião, ele próprio não ousaria tentar imitar, sem perigo para a sua castidade, e isto não apenas no ardor da juventude, mas nem mesmo agora.

Apesar, porém, de exprimir a maior admiração por esse fato, o abade João, no entanto, se eximiu de exortar qualquer um dos monges a experimentar o mesmo. Ele sabia que muitas coisas feitas corretamente por uns trazem um mau fim para outros que os querem imitar, e que uma graça especial conferida pelo Senhor a uns poucos, não pode servir para todos.