Cassiano Collatio XIV-11

CASSIANO — CONFERÊNCIAS

PRIMEIRA CONFERÊNCIA DO ABADE NÉSTEROS — A CIÊNCIA ESPIRITUAL

XI. Os sentidos múltiplos das Escrituras divinas

À medida que cresce, por esse esforço, a renovação da nossa mente, começa também a mudar a face das Escrituras, e a beleza de uma compreensão mais sagrada aumenta com os nossos progressos. Elas se acomodam à capacidade dos sensos humanos, aparecendo terrena para o homem carnal, e divina para os espirituais. Os que antes as viam como que envoltas em nuvens pesadas, não podem, desse modo, perceber a sua profundeza nem sustentar o seu esplendor.

Para mostrar melhor, por um exemplo, o que tentamos afirmar, basta citar um testemunho da Lei. Por ele, vou provar que todos os preceitos celestes se estendem a todo o gênero humano, mas segundo a medida do estado de cada um de nós.

Com efeito, está escrito na Lei: “Não fornicarás” (Êx 20,14). O homem ainda prisioneiro das paixões e obscenidades da carne guardará proveitosamente este preceito, tomando-o simplesmente em seu sentido literal. Mas aquele que já se desprendeu da ação torpe e do afeto impuro, cumpre-lhe observá-lo em seu sentido espiritual, como, por exemplo, afastar-se não só do culto dos ídolos, mas também de toda superstição paga, dos augúrios, dos presságios, da observância de sinais, de dias e de tempos. Ou, ao menos, não se deixe prender a essas conjeturas que se tiram de certas palavras e nomes, que corrompem a pureza da nossa fé.

É por tal fornicação, que se diz que Jerusalém foi desonrada, quando fornicou “em toda colina elevada e debaixo de toda árvore frondosa” (Jer 3,6). E que o Senhor, em outro lugar, repreende pela boca do profeta: “Que venham e te salvem os augúrios do céu, que contemplavam astros e contavam os meses, a fim de te anunciar o que estava para vir a ti” (Is 47,13). Tal é também a falta de que o Senhor acusa acolá o seu povo: “Um espírito de fornicação os enganou, e eles fornicaram se afastando do seu Deus” (Os 4,12).

Mas todo aquele que se livra desta dupla fornicação, terá uma terceira a evitar, a que consta das superstições da Lei e do Judaísmo, das quais disse o Apóstolo: “Observar dias e meses e tempos e anos” (Gal 4,10). E ainda: “Não pegues, nem saboreies, nem toques…” (Col 2,21).

É fora de dúvida que tais coisas foram ditas a propósito das superstições da Lei. Cair nelas é seguramente tornar-se adúltero em relação ao Cristo, e não merecer escutar o que diz o Apóstolo: “Eu vos desposei a um esposo único, para vos apresentar ao Cristo como uma virgem pura” (2 Cor 11,2 ). Mas é para ele que se dirige a voz do mesmo Apóstolo, lembrando, o que se segue: “Temo, entretanto, que, como a serpente seduziu Eva por sua astúcia, também os vossos sentimentos se corrompam da simplicidade que há em Cristo Jesus” (id 3).

Mas se conseguir escapar também a esta fornicação, encontrará uma quarta, que é aquela cometida como um adultério em relação aos dogmas da fé, abraçando um doutrina herética. Dela, mais uma vez, o bem-aventurado Apóstolo diz: “Eu sei que, depois da minha partida, se introduzirão no meio de vós lobos cruéis que não pouparão o rebanho, e que mesmo dentre vós se levantarão homens que vão ensinar doutrinas heréticas, para arrastar consigo discípulos” (At 20, 29-30).

Quem puder fugir desta, tenha cuidado para não cair numa forma mais sutil do pecado de fornicação, que consiste na divagação dos pensamentos. Todo pensamento que afasta, por pouco que seja, de Deus, e não somente dos pensamentos torpes, mas também qualquer pensamento inútil, e, aos olhos do perfeito, uma fornicação impura.