Carreira das Neves Nicodemos

Nascer do Alto — JOÃO CARREIRA DAS NEVES

A pessoa de Nicodemos aparece três vezes em João (3,1.4.9.; 7,50; 19, 39), mas é completamente desconhecida dos Sinópticos. Esta anotação pessoal reforça a tradição histórica do quarto evangelho. Em 7, 5 Nicodemos aconselha o Sinédrio a ter cuidado em não julgar Jesus sem primeiro “o ouvir e averiguar o que ele anda a fazer”. Em 19,39 aparece juntamente com José de Arimateia para sepultarem Jesus. Como José de Arimateia é conhecido dos três Sinópticos (Mc 15,43; Mt 27,57; Lc 23, 51), também Nicodemos não é nenhuma invenção da tradição joanica. E os dois são descritos pelo autor de João de maneira semelhante:”Depois disto, José de Arimateia, que era discípulo de Jesus, mas secretamente por medo das autoridades judaicas… Nicodemos, aquele que antes tinha ido ter com Jesus de noite…” (19,38-39). Trata-se de pessoas importantes entre os judeus, mas levaram tempo a decidirem-se a favor de Jesus.

Regressando ao nosso texto de 3, 1-21, a narrativa pode dividir-se em três subunidades literárias e temáticas:

1) 3,1-8 com o tema do ALTO e com o diálogo entre Jesus e Nicodemos na primeira pessoa (“eu”Jesus) e segunda pessoa (“tu” Nicodemos) do singular, de mistura com a segunda pessoa do plural (v. 7: “Não te admires por eu te ter dito: Vós tendes de nascer do ALTO”).

2) 3, 9-15 com o tema da dialéctica entre o Céu e a terra. O autor usa os tempos verbais pronominais ora na segunda ora na terceira pessoa: “Tu és mestre em Israel e não sabes esta coisas? Nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais. Se vos falei das coisas da terra e não credes, como é que haveis de crer quando vos falar das coisas do Céu? Pois ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem.” Esta mudança de tempos verbais e de pronomes pessoais é típico do nosso evangelho e significa que Jesus tanto se dirige à pessoa concreta (“tu”) como aos destinatários do mesmo evangelho de todos os tempos, a começar pelos primeiros destinatários.

3) 3,14-21 com o tema central do Filho do Homem, elevado ao alto na Cruz, para que todos os que nele acreditam sejam salvos e tenham a vida eterna. Jesus é chamado “Filho do Homem” e “Filho Unigênito”, passando-se da exaltação da Cruz para a escatologia realizada da vida eterna neste mundo, consoante a fé ou não-fé. A fé e consequente escatologia realizada é classificada com a metáfora da LUZ (5 vezes em três versículos, 19-21) e a não-fé e consequente condenação com a das TREVAS.

O autor começa por descrever a figura de Nicodemos: “Entre os fariseus havia um homem chamado Nicodemos, um chefe dos judeus. Veio ter com Jesus de noite e disse-lhe: ‘Rabi, nós sabemos que tu vieste da parte de Deus, como Mestre, porque ninguém pode realizar os sinais portentosos que tu fazes, se Deus não estiver com ele” (1, 1-2). Como resposta, o Jesus joanico estabelece com Nicodemos o primeiro dos muitos diálogos “teológicos” que iremos encontrar ao longo do evangelho. Como bem classifica José Luis Espinel Marcos: “No encontro de Jesus com Nicodemos temos a confrontação de Jesus com o rabinismo. E um momento de cortesia, de diálogo, mas onde o rabino reconhece a autoridade espiritual de Jesus”1. Depois da confrontação de Jesus com o Templo é lógica, na retórica do autor, a confrontação com o rabinismo farisaico.

A resposta de Jesus não é uma resposta “ad hominem”,mas de fundamentação teológica: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus.” A volta desta afirmação desenrola-se, depois, todo o grande diálogo em que a “incompreensão” de Nicodemos leva Jesus a expor uma e outra vez, sempre em tom crescente, o seu parecer. Já vimos que se trata dum estilo retórico do autor.

O conceito ALTO (anôthen) aparece cinco vezes no evangelho (3,3. 7.31; 19,11.23) e quatro vezes com sentido teológico, ao contrário dos Sinópticos em que só aparece uma vez (Mt 27,51 e par.) e com sentido normal espacial: “Então o véu do Templo rasgou-se em dois, de alto a baixo” (cf. com o mesmo sentido em Jo 19, 23: “A túnica, toda tecida de uma só peça de alto a baixo…”).

O qualificativo ALTO relaciona-se com Jesus no grande diálogo com Nicodemos:

“Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do ALTO não pode ver o Reino de Deus” (3, 3).

“Não te admires por eu te ter dito:Vós tendes de nascer do ALTO” (3,7).

“Aquele que vem do ALTO está acima de tudo”.

“Não terias nenhum poder sobre mim se não te fosse dado do ALTO”.

Dizer que Jesus vem do ALTO, é dizer o mesmo que “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus” (1,1). Afirma-se a preexistência do Verbo-Jesus. Se vem do “Alto” e se é “preexistente”, não pode vir da terra, ao contrário de Nicodemos e de todos os demais humanos.

O grande diálogo entre Jesus e o rabino ou entre Jesus e o judaísmo rabínico consiste nesta dialéctica. Nascer do “Alto” é nascer da “água e do Espírito, porque o que nasce da carne é carne e o que nasce do Espírito é espírito” (3, 5). E Jesus remata a primeira parte do diálogo com esta afirmação: “Ninguém subiu ao Céu a não ser aquele que desceu do Céu” (3, 13).

No diálogo, Jesus refere o REINO DE DEUS por duas vezes, a primeira com o verbo “ver” (v.3: “Quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus”) e a segunda com o verbo “entrar” (v. 5: “Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus”). Os verbos são interdependentes. Convém observar que só aqui aparece o sintagma “Reino de Deus”, o qual, nos Sinópticos, é o centro de toda a vida de Jesus.

O diálogo tem em vista o sacramento cristão do batismo, pela água e pelo Espírito, e não somente pela água como era o de João Batista e dos rituais comuns dos judeus. Basta lembrar as Bodas de Caná. Jesus espanta-se que Nicodemos não perceba isto: “Tu és mestre em Israel e não sabes estas coisas?” (v. 10). Mas como é que Nicodemos poderia saber, se ainda não lhe tinha sido revelado? Jesus, na sua retórica típica antecede a afirmação para, em seguida, lhe dar a fundamentação: “Em verdade, em verdade te digo: nós falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho” (v. 11). Em João, a duplicação da fórmula: “Em verdade, em verdade…” é comum e significa que Jesus está a revelar verdades desconhecidas. No caso concreto, trata-se dum “saber” e dum “ver” só agora revelados. Como dissemos, Jesus utiliza o plural: “nós falamos… sabemos… damos testemunho… vimos” para se confundir com a sua comunidade joanica crente. O Reino de Deus realiza-se pelo batismo na água e no Espírito enquanto que nos Sinópticos se realiza na fé em Jesus. As duas afirmações: “Vós tendes de nascer do ALTO… Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (vv. 7-8) dizem o mesmo. A oposição entre “carne” e “Espírito” nada tem a ver com o dualismo grego, mas com a família do “sangue” e a família da “fé”. Corresponde à metáfora de Jesus nos Sinópticos (“Quem são minha mãe e meus irmãos?… Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mc 3, 33-34 e par.) e à afirmação de Jo 1, 13: “Estes não nasceram de laços de sangue, / nem de um impulso da carne, / nem da vontade de um homem, / mas sim de Deus.”

Na segunda subunidade, o centro temático gira à volta da figura do FILHO DO HOMEM, que desceu do Céu e há-de subir ao Céu. E uma outra maneira de falar do ALTO.

Tanto nos Sinópticos como em João, o epíteto FILHO DO HOMEM só aparece na boca de Jesus2. E o epíteto preferido de Jesus. Muito se tem escrito, investigado e discutido sobre este epíteto. No AT aparece em Dn 7, 13-14, como figura misteriosa, sentada à direita do “Antigo dos Dias” (Deus), a quem Deus entrega “as soberanias, a glória e a realeza e a quem todos os povos, gentes e nações de todas as línguas o serviram. O seu império é um império eterno que não passará jamais, e o seu reino nunca será destruído.”

O Deus YHWH abre uma brecha “apocalíptica” neste intermediário, Filho do Homem, entregando-lhe o governo das nações. Contrariamente a muitos autores, que julgam tratar-se dum epíteto criado pela Igreja primitiva, pensamos que Jesus escolheu conscientemente este epíteto desconcertante para si próprio pela carga misteriosa que acarreta. É fato que aparece também na literatura apocalíptica intertestamentária, sobretudo no lHenoc, mas como alguém “divino” que castiga os inimigos de Israel, destrona tronos e desfaz com os seus dentes todos os pecadores (cf. lHenoc 46). Jesus nunca manifestou semelhante atitude. É importante revisitarmos os textos de João onde aparece Jesus como Filho do Homem:

1, 51: “Vereis abrir-se o céu e os anjos de Deus a subir e a descer sobre o Filho do Homem”

3, 13: “Ninguém subiu ao céu a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem”

3, 14: “Como Moisés levantou a serpente no deserto, convém que o Filho do Homem seja levantado”

5, 27: “(Deus) deu-lhe autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem”

6, 27: “Procurai o alimento que dura até à vida eterna, aquele que o Filho do Homem vos dá”

6, 53: “Se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós”

6, 62: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do Homem subir para onde estava antes?”

8, 28: “Quando levantardes o Filho do Homem, então conhecereis que EU SOU”

9, 35: (Jesus ao cego de nascença) “Crês no Filho do Homem?”

12, 23: “Jesus respondeu: chegou a hora em que o Filho do Homem será glorificado”

12, 34:”Como dizes tu que é preciso que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?”

13, 31:”…Jesus disse:”agora o Filho do Homem vai ser glorificado”3

Como também acontece com os Sinópticos, a natureza do Filho do Homem tem a ver 1) com a sua morte-elevação na Cruz, 2) com a sua autoridade e poder em dar a vida, e 3) com a sua glorificação. É importante notarmos que o epíteto só aparece na primeira parte do Livro — o dos SINAIS — em que o Filho do Homem se apresenta a judeus, discípulos, amigos e inimigos. Na segunda parte — o livro da GLORIA — , voltada exclusivamente para os discípulos, Jesus anuncia o seu regresso ao Pai, sem as diversas modalidades de natureza deste Filho do Homem.

Regressando ao nosso texto, as duas vezes em que Jesus se apresenta como Filho do Homem, a primeira tem a ver com a sua natureza de preexistência (3,13) e a segunda de exaltação na Cruz (3,14).

Na terceira subunidade (3,16-21),Jesus aparece como “Filho Unigênito” (cf. 1,18), que Deus mandou ao mundo “para que todo aquele que crê nele não se perca, mas tenha a vida eterna” (v. 16). O autor regressa aos temas do prólogo com as imagens da fé e não-fé, luz e trevas e correspondentes salvação e condenação. É uma das catequeses recorrentes do quarto evangelho que implica a fé-luz e respectiva resposta, pela positiva — salvação — ou pela negativa — condenação.


Depois do sinal de NICODEMOS, o autor apresenta o segundo testemunho de João Batista (3, 22-30), que já estudamos. Em seguida, nos vv. 31-36, deparamo-nos com um dos problemas redacionais do quarto evangelho. A literalidade e conteúdos do texto referem a literalidade e conteúdos do sinal NICODEMOS: “Aquele que vem do ALTO está acima de tudo. Quem é da TERRA… Aquele que vem do CÉU… dá testemunho daquilo que VIU e OUVIU…. dá o ESPÍRITO sem medida. O Pai ama o Filho e tudo põe na sua mão. Quem crê no filho tem a VIDA ETERNA; quem se nega a crer no Filho não verá a VIDA, mas sobre ele pesa a ira de Deus.”

Logicamente é João Batista que continua a dar o seu testemunho, mas a letra e o conteúdo teológico correspondem com o Jesus do sinal NICODEMOS.

A única grande novidade, que a distingue do sinal NICODEMOS, consiste no fato do autor, pela primeira vez, depois do prólogo sobre o LOGOS (cf. 1, 14. 18), referir a pessoa do PAI, que em seguida irá apresentar continuamente na sua relação PAI-FILHO e acentuar também o tema da VIDA relacionado com a fé em Jesus.

Nós pensamos que não é nem Jesus nem o Batista, mas o autor a apresentar o seu parecer pessoal, isto é, sem monólogo nem diálogo, mas em primeira pessoa, sobre tudo quanto se disse até agora. Seria uma espécie de resumo doutrinal. Ao longo do evangelho iremos encontrar estas reflexões “pessoais” do autor.


  1. Marcos, José Luis Espinel, Ibidem, p.89. 

  2. A temática bíblico-teológica do “Filho do Homem” já foi tratada na segunda parte do nosso estudo. O leitor vai encontrar algumas repetições. 

  3. Esta listagem foi retirada da obra de Marcos,J. L. E., Ibidem p. 92.