Bossuet — Do conhecimento de Deus e de si mesmo
Excertos de “O Tema do Homem”, de Julián Marías
A ALMA HUMANA
Conhecemos nossa alma por suas operações, que são de duas classes: as operações sensitivas e as operações intelectuais.
Não há ninguém que não conheça o que se chama os cinco sentidos, que são: a vista, a audição, o olfato, o gosto e o tacto.
Pertencem à vista a luz e as cores; à audição, os sons; ao olfato os odores bons e maus; ao gosto, o amargo e o doce e as demais qualidades semelhantes; ao tacto, o quente e o frio, o duro e o macio, o seco e o úmido.
A natureza, que nos ensina que estes sentidos e suas ações pertencem propriamente à alma, ensina-nos também que têm seus órgãos ou seus instrumentos no corpo. Cada sentido tem seu próprio. A vista tem os olhos; a audição tem os ouvidos; o olfato tem o nariz; o gosto tem a língua e o paladar; só o tacto se estende por todo o corpo e se encontra em todos os lugares onde há carne.
As operações sensitivas, isto é, dos sentidos, se chamam sentimentos, ou melhor dito, sensações. Ver as cores, ouvir os sons, degustar o doce e o amargo, são outras tantas sensações diferentes.
As sensações se produzem em nossa alma em presença de certos corpos, que chamamos objetos. Sinto calor em presença do fogo; só ouço algum ruído ao agitar-se um corpo; sem a presença do sol e dos demais corpos luminosos, não veria a luz; nem o branco ou o negro, se não estivessem presentes, por exemplo, a neve ou o pixe ou a tinta. Afastai os corpos mal polidos ou agudos; não sentirei nada áspero nem perfurante. Ocorre o mesmo com as demais sensações. (…)
O prazer e a dor acompanham as operações dos sentidos: sente-se prazer ao degustar boas iguarias, e dor ao degustá-las más; e assim com os demais. (…)
São necessárias ainda duas observações sobre as sensações.
A primeira é que, por diferentes que o sejam, há na alma uma faculdade que as pode reunir. Pois a experiência nos ensina que só se constitui um objeto sensível com tudo o que nos impressiona ao mesmo tempo, inclusive por sentidos diferentes, sobretudo quando a impressão provém do mesmo lugar. Assim, quando vejo o fogo de certa cor, sinto o calor que me causa e ouço o ruído que faz, não só vejo essa cor, sinto esse calor e ouço esse ruído, como sinto essas sensações diferentes como procedentes do mesmo fogo.
Esta faculdade da alma que reúne as sensações. . . chama-se o sentido comum: termo que se transpõe às operações do espírito, mas cuja significação própria é a que acabamos de indicar.
A segunda coisa que se deve observar nas sensações é que, depois de haverem passado, deixam na alma uma imagem de si mesmas e de seus objetos; é isto o que se chama imaginar. (…)
Chama-se sentido externo àquele cujo órgão aparece no exterior, e que exige um objeto externo atualmente presente.
Tais são os cinco sentidos que todos conhecem. Vêem-se os olhos, os ouvidos e os demais órgãos dos sentidos: e não se pode ver, nem ouvir, nem sentir de nenhum modo sem que os objetos externos que podem impressionar esses órgãos esteiam presentes do modo que convém.
Chama-se sentido interno aquele cujos órgãos não são visíveis, e que não exige um objeto externo atualmente presente. Inclui-se ordinariamente entre os sentidos interiores essa faculdade que reúne as sensações, que se chama o sentido comum, e a que as conserva ou as renova, isto é, a imaginativa. (…)
Desses sentimentos internos e externos, e principalmente dos prazeres e da dor, nascem na alma certos movimentos que chamamos paixões. (…)
Esses apetites ou essas repugnâncias e aversões se chamam movimentos da alma: não é que mude de lugar ou se transporte de um ponto a outro, mas que, do mesmo modo que o corpo se aproxima ou se afasta movendo-se, a alma, com seus apetites ou aversões, se une aos objetos ou deles se separa.
Uma vez assentes estas coisas, podemos definir a paixão como um movimento da alma, que, afetada pelo prazer ou pela dor sentida ou imaginada em um objeto, persegue-o ou dele se afasta. (…)
As operações intelectuais são as que se elevam acima dos sentidos.
Digamos algo mais preciso. São as que têm por objeto alguma razão que nos é conhecida.
Chamo aqui razão a apreensão ou a percepção de algo verdadeiro, ou que se reputa como tal. O que segue fará compreender tudo isto.
Há duas classes de operações intelectuais: as do entendimento e as da vontade.
Uma e outro têm por objeto alguma razão que nos é conhecida. Tudo o que entendo se funda em alguma razão; não quero nada sem que possa dizer qual a razão pela qual o quero.
Não ocorre o mesmo com as sensações, como mostrará o que segue a quem se detiver atentamente na questão. Digamos antes de tudo o que pertence ao entendimento.
O entendimento é a luz que Deus nos deu para conduzir-nos. Dão-se-lhe diversos nomes: na medida em que inventa e penetra, se chama engenho: na medida em que julga e dirige para a verdade e o bem, chama-se razão e juízo.
O verdadeiro caráter do homem, que o distingue tanto dos demais animais, é ser capaz de razão. Está inclinado naturalmente a dar razão do que faz. Assim, o verdadeiro homem será aquele que possa dar boa razão de sua conduta.
A razão, na medida em que nos afasta do verdadeiro mal do ho-nem, que é o pecado, chama-se consciência.
Quando nossa consciência nos reprova o mal que fizemos, chama-se isto sindérese ou remorso de consciência.
Foi-nos dada a razão para que nos elevemos acima dos sentidos e da imaginação. A razão que os segue e a eles se submete é uma razão corrompida, que não merece já o nome de razão. (…)
Estamos determinados por nossa natureza a querer o bem em geral; mas temos a liberdade de nossa escolha a respeito de todos os bens particulares. Por exemplo, todos os homens querem ser felizes, e este é o bem geral que a natureza pede. Porém, uns põem a felicidade em uma coisa, outros em outra; uns, no retiro, outros, na vida comum; uns nos prazeres e nas riquezas, outros na virtude.
Relativamente a estes bens particulares temos liberdade de escolha; e isto é o que se chama o franco arbítrio ou o livre arbítrio.
Ter livre arbítrio é poder escolher uma coisa a outra; exercitar o livre arbítrio é escolhê-la efetivamente.
Assim, o livre arbítrio é o poder que temos de fazer ou não fazer algo; por exemplo, posso falar ou não falar, mover a mão cu não a mover, movê-la para um lado em vez de o fazer para o outro.
Por isto tenho meu livre arbítrio, e exercito-o quando tomo partido entre coisas que Deus pôs em meu poder.
Antes de decidir-se, entra em razões consigo mesmo sobre o que deve fazer, isto é delibera: e aquele que delibera sente que tem que escolher.
Assim, um homem que não tenha o espírito corrompido não necessita que se lhe prove seu livre arbítrio, pois o sente; e não sente que vê ou que percebe os sons ou que razoa com mais clareza, que se sente capaz de deliberar e de escolher. (…)
Há uma razão ganha já pelos sentidos e por seus prazeres, que, longe de reprimir as paixões, as alimenta e as excita, Um homem se inflama a si próprio com razoamentos falsos, que fazem mais violento o desejo que tem de vingar-se; mas estes razoamentos, que não procedem segundo os verdadeiros princípios, não são tanto raciocínios como extravios de um espírito prevenido e cego.
Por isto dissemos que a razão que segue os sentidos não é uma razão verdadeira, mas uma razão corrompida, que no fundo não é mais razão do que é um homem um homem morto.
As coisas que se explicaram fizeram-nos conhecer a alma em todas suas faculdades. As faculdades sensitivas foram-nos apresentadas nas operações dos sentidos internos e externos, e nas paixões que deles nascem; e as faculdades intelectuais se nos apareceram também nas operações do entendimento e da vontade.
Embora possamos dar a estas faculdades nomes diferentes de acordo com suas diversas operações, isto não nos obriga a considerá-las como coisas diversas. Pois o entendimento não é outra coisa que a alma enquanto concebe; a memória não é outra coisa que a alma enquanto retém e recorda; a vontade não é outra coisa que a alma enquanto quer e escolhe.
Do mesmo modo. a imaginação não é outra coisa que a alma enquanto imagina e representa as coisas do modo que se disse. A faculdade visual não é outra coisa que a alma enquanto vê; e assim as demais. De sorte que se pode entender que todas estas faculdades são no fundo a mesma alma, que recebe diversos nomes devido a suas diferentes operações.
(De la connaissance de Dieu et de soi-même, I)