Bonaventura Contemplatio 10-13

BOAVENTURA — ITINERÁRIO DA MENTE A DEUS

A CONTEMPLAÇÃO DE DEUS NOS SEUS VESTÍGIOS IMPRESSOS NO MUNDO SENSÍVEL (cont.)

10 Esta consideração pode ainda se desenvolver percorrendo as sete diferentes espécies de números, com os quais se ascende a Deus como por sete degraus. Santo Agostinho seguiu este método no seu tratado “Sobre a Verdadeira Religião” e no sexto livro “Sobre a Música”. Nestas obras ele determina a diferença destes números que se elevam gradativamente das criaturas sensíveis até ao Criador de tudo e que nos fazem ver a Deus em todas elas.

NOTA: Cf. De Vera Religione, caps. 40-44, nn. 74-82 e VI De Musica, passim. S. Agostinho “por número quer significar não somente números naturais, mas também relações, harmonias, proporções e, decerto, ritmos. (…) Os primeiros ritmos ou números são os sonantes — números soantes, que são exteriores à alma no corpo e estão no ar; os occursores — números ocorrentes, que são ritmos percebidos como existentes na apreensão dos sentidos. Os progressores são os números que vêm de dentro e são expressos em gesticulações e movimentos rítmicos. Os sensuales, números sensoriais, são os prazeres que tais números nos causam. Ritmos ou melodias podem ser conservados na memória, e, quando recordados, constituem os memoriales ou números lembrados. Finalmente, transcendendo a mente, estão os iudicales — os números judiciais, que são as razões eternas pelas quais julgamos acerca dos ritmos. É interessante observar que S. Boaventura acrescenta uma sétima espécie: os números artísticos, artificiales; são as concepções do artista que, por uma impressão das razões eternas ou números judiciais, mediante ações apropriadas do corpo (progressores), é capaz de expressar coisas belas e bem proporcionadas. Esta é uma valiosa contribuição de S. Boaventura para a teoria da arte: aqui está uma base para o elemento expressionístico que deve estar em cada criação, sem o qual esta será simples imitação e, conseqüentemente, uma arte não verdadeira”. Ph. Boehner, op. cit., p.119, nota 11.

Com efeito, segundo as explicações do santo Doutor, há números nos corpos, sobretudo nos sons e na voz: ele os chama “soantes”. Há números tirados dos primeiros e recebidos na faculdade sensitiva: a estes os chama de “ocorrentes”. Há outros números que procedem da alma e se projetam no corpo, como se pode ver nos gestos e na dança: ele os denomina “progressivos”. Há números nos prazeres dos sentidos produzidos pela reação da faculdade sobre a imagem percebida: a estes designa-os com o nome de “sensoriais”. Há números retidos na memória, aos quais denomina com o termo de números “memoriais”. Além disso, chama números “judiciais” aqueles pelos quais julgamos todas as coisas. Estes — como se fez observar — estão necessariamente acima de nossa mente, pois que são infalíveis e não dependem de nosso julgamento. Estes últimos criam nas nossas almas os números “artísticos”, que, no entanto, Santo Agostinho não menciona nesta classificação por estarem conexos com os “judiciais”. Destes derivam os números “progressivos”, dos quais tiram sua origem numerosas formas de obras artísticas. Assim, nós descemos ordenadamente dos números mais elevados pelos intermediários e ascendemos também gradativamente aos supremos, partindo dos “soantes”, passando pelos “ocorrentes”, “sensoriais” e “memoriais”.

Portanto, porque todas as coisas são belas e de certo modo agradáveis, porque a beleza e o prazer não podem existir sem a proporção e porque a proporção se encontra principalmente nos números, é necessário que em todas as coisas se encontre o número. Por isso, “o número é o principal exemplar na mente do Criador” (segundo afirmação de Boécio, 1 De Aritmética, cap. 2) e é nas coisas o principal vestígio que conduz à Sabedoria. Como este vestígio — o número — é o mais evidente a todos e muito próximo de Deus, conduz-nos muito perto de Deus, fazendo-nos passar por sete diferentes degraus. Ele no-l’O faz conhecer nas coisas corporais e sensíveis, ao percebermos as coisas feitas segundo uma disposição de números, ao deleitarmo-nos nas suas harmoniosas proporções e ao julgarmo-las de modo irrefutável pelas leis dos números.

11 Destes dois primeiros degraus pelos quais somos levados a contemplar a Deus nos seus vestígios — degraus figurados pelas duas asas que cobrem os pés do Serafim (cf. Is 6,2) — podemos concluir que todas as criaturas do mundo sensível conduzem o espírito do contemplante e do sábio ao Deus eterno. As criaturas são, efetivamente, uma sombra, um eco e uma pintura daquele primeiro Princípio potentíssimo, sapientíssimo e boníssimo — d’Aquele que é a eterna fonte, a luz, a plenitude, a causa, o exemplar e a ordenação de tudo. Elas são os vestígios, as aparências, as representações e os sinais divinamente apresentados aos nossos olhos para nos ajudarem a ver a Deus na Criação. São — digo — exemplares ou, melhor ainda, ilustrações propostas aos espíritos ainda rudes e presos à vida dos sentidos, a fim de elevarem-nos, pelas realidades sensíveis que vêem, às coisas da inteligência que não vêem, assim como por meio dos sinais chega-se ao conhecimento (gnosis) das realidades significadas.

12 Ora, as criaturas do mundo visível são os sinais das perfeições invisíveis de Deus (cf. Rom 1,20): seja porque Deus é a sua causa, seu exemplar e seu fim (pois todo efeito é sinal de sua causa, toda cópia é sinal de seu exemplar e todo meio é sinal do fim ao qual conduz), seja por meio de sua própria representação, seja como figuras proféticas, seja pelo ministério dos anjos, seja por uma instituição divina.

Todas as criaturas são, de fato, pela sua natureza uma imagem ou uma semelhança dá Sabedoria eterna. Mas o são particularmente aquelas que foram empregadas pelo espírito de profecia para prefigurarem realidades espirituais. São-no, porém, mais especialmente aquelas em cuja figura Deus quis aparecer pelo ministério dos anjos e, de maneira toda especial, aquelas que Deus mesmo instituiu para serem sinal de sua Graça — e não apenas um sinal no sentido ordinário da palavra, mas um sinal que é um Sacramento.

NOTA: De acordo com a definição clássica, os sacramentos são sinais eficazes da Graça. Eles “destinam-se à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo e ainda ao Culto a ser prestado a Deus. Sendo sinais, destinam-se também à instrução. Não só supõem a fé, mas por palavras e coisas também a alimentam, a fortalecem e a exprimem. Por esta razão são chamados sacramentos da fé. Conferem certamente a graça, mas a sua celebração também prepara os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente a Deus e praticarem a caridade”. Const. Sacrosanctum Concilium, n. 59, apud Documentos do Vaticano II (Editora Vozes, Petrópolis 1966), n. 619. Em cada um dos sacramentos a Igreja se auto-realiza, num e para um indivíduo, como “sacramento universal da salvação”. Const. Lumen Gentium, n. 48. Pois “Deus convocou e constituiu a Igreja — comunidade congregada daqueles que, crendo, voltam seu olhar para Jesus, autor da salvação e princípio da unidade e da paz — a fim de que ela seja para todos e cada um sacramento visível desta salutífera unidade”. Ibid.. n. 9. Apud. Documentos do Vaticano II: n. 129 e n. 26, etc.

13 Concluamos, então, que “as perfeições invisíveis de Deus, desde a criação do mundo, se vêem visivelmente através do conhecimento (gnosis) que as criaturas d’Ele nos dão” (Rom 1,20). “De maneira que são indesculpáveis” (Rom 1,20) os que não querem considerar tais coisas e recusam, com isso, reconhecer, bendizer e amar a Deus na Criação, porque estes não querem passar “das trevas à admirável luz de Deus. Nós, porém, demos graças a Deus por meio de Jesus Cristo, Senhor nosso” (1 Cor 15,57), que nos tirou “das trevas para conduzir-nos à sua maravilhosa Luz” (1 Ped 2,9). Entrementes, por estas luzes exteriores disponhamo-nos a lixar os olhos sobre o espelho de nossa alma, na qual resplandecem as perfeições divinas.