Aloisio Wiesinger — São Bernardo de Claraval
S. Bernardo, citarista de Maria.
Consideração especial merece a doutrina do abade de Claraval sobre a ss. Virgem Maria. Por sua terna e ardente veneração para com a augusta mãe de Deus, foi Bernardo denominado com razão o “cavaleiro” ou “citarista” de Maria. Honrando como rainha e soberana aquela que por ter dado à luz o Filho de Deus compartilha o seu domínio sobre toda criatura, Bernardo compraz-se em invocá-la com o título de “Nossa Senhora”. Esta expressão hoje tão comum nos lábios dos cristãos, quando se referem a Maria ss., muitos talvez ignorem ter sido Bernardo quem, empregando-a com freqüência, a tornou tão popular.
Entre os grandes privilégios concedidos a Maria ocupa o primeiro lugar a maternidade divina. Para torná-la digna do sublime título de Theotokos (termo grego significando “Mãe de Deus”, com o qual os Padres do Concílio de Éfeso (431) aclamaram Maria SS), o Senhor cumulou a sua eleita de graças, virtudes e dons, cuja medida supera a de todos os demais santos.
Escutemos Bernardo exaltar com acentos incomparáveis a glória daquela em cuja fronte brilha o duplo diadema de virgem e mãe.
“Ninguém duvida que entre as outras virgens, ou antes a primeira entre todas, a rainha das virgens cante no reino de Deus aquele cântico, que só às virgens é dado cantar. Julgo, porém, que além desse cântico modulado em companhia das demais virgens, ela há de regozijar a Cidade de Deus com um cântico ainda mais suave e mais belo; cântico que nenhuma outra virgem será digna de entoar, por ser privilégio daquela a quem foi reservada a glória da divina maternidade. Mas, se Maria se glorifica, glorifica-se não em si mesma, e sim naquele a quem gerou. Com efeito, Deus, a quem ela deu à luz, não pode deixar de enriquecer nos céus com glória singular aquela que, por ser sua mãe, foi por ele ornada com a graça única e inefável de conceber permanecendo virgem e dar à luz ficando inviolada. Não convinha a Deus outro nascimento a não ser de uma virgem, nem à virgem outra prole senão o próprio Deus. Eis por que o Criador dos homens, querendo fazer-se homem e nascer da raça humana, devia escolher entre todas a sua mãe, ou antes fazê-la tal como convinha para merecer sua complacência. Quis, portanto, fosse virgem sem mácula aquela, da qual nasceria o Filho imaculado, que vinha lavar as máculas de todos os homens”.
Citemos ainda estas belas comparações, que o abade de Claraval, com tanta unção e piedade, aplica à Virgem Deípara: “Que significava aquela sarça vista por Moisés, que ardia sem consumir-se, senão Maria dando à luz sem sofrimento? E a vara de Aarão florescendo sem ser irrigada, não é Maria concebendo sem concurso de varão? Deste grande milagre Isaías profetizou o mistério dizendo: “Sairá um rebento da haste de Jessé e uma flor nascerá de sua raiz” (Is 11, 1). O rebento é a Virgem e a flor a sua prole. Como o desabrochar da flor não danifica o verdor da haste, assim o fruto do seio de Maria não lhe contaminou a virgindade”.
Não podemos omitir estas magníficas páginas, em que Bernardo comenta o versículo do Evangelho: “O nome da Virgem era Maria”. “Falemos ainda brevemente sobre o nome de Maria, que significa estrela do mar e convém admiravelmente à Virgem Mãe. Com acerto é comparada a uma estrela, pois, assim como esta emite sem alteração o seu fulgor, assim Maria, sem detrimento da virgindade, gera o seu Filho. O raio de luz não diminui o esplendor do astro que o produz; nem tão pouco o Filho da Virgem lhe diminuiu a integridade. Ela é, com efeito, a nobre estrela de Jacó, cujos raios iluminam todo o orbe, cujo esplendor brilha nos céus, penetra as regiões subterrâneas, perlustra a terra, aquecendo mais as almas que os corpos, fomentando as virtudes e eliminando os vícios. Bela e admirável é esta estrela, que refulge acima do vasto oceano, brilhando pelos méritos e irradiando exemplos. Vós que, no curso deste século, julgais antes flutuar entre procelas e tempestades do que caminhar em terra firme, não desvieis o olhar do brilho desta estrela, se não quereis submergir-vos nas ondas. Quando se levantar o vendaval das tentações, quando se vos depararem os escolhos das tribulações, olhai a estrela, invocai Maria. Se vos agitarem as vagas do orgulho, da ambição, da maledicência, da inveja, olhai a estrela, invocai Maria. Se a cólera, a avareza, os incentivos da carne assaltarem a barquinha de vossa alma, olhai Maria. Se, perturbados pela enormidade dos pecados, envergonhados pela torpeza da consciência, começais a engolfar-vos no pélago da tristeza ou no abismo do desespero, pensai em Maria. Nos perigos, nas angústias, nas situações incertas, pensai em Maria, invocai Maria. Não se afaste este nome de vossa boca nem de vosso coração, e, a fim de obter o socorro de sua intercessão, não abandoneis o exemplo de sua vida. Se a seguirdes, não vos transviareis; invocando-a, não caireis no desespero; nela pensando, não errareis. Se ela vos sustentar, não sereis abatidos; se vos proteger, nada haveis de recear; tendo-a por guia, não vos cansareis; se vos fôr propícia, chegareis a feliz termo e, por experiência, conhecereis com que razão foi dito: O nome da virgem era Maria”.
A par das grandezas e privilégios com que Deus gratuitamente cumulou a sua mãe, Bernardo não deixa de enumerar as virtudes que atraíram sobre a Virgem os olhares do Altíssimo. Entre elas brilha com singular fulgor o amor da pureza, que a fez, sem exemplo precedente, emitir o voto de perpétua virgindade. “O’ Virgem prudente, exclama o santo abade, ó Virgem piedosa, quem vos ensinou que Deus se compraz nas virgens? Qual a lei, o preceito, a página do Antigo Testamento, que vos ordenou ou aconselhou a viver na carne de modo não carnal, a levar na terra vida angélica? Onde lestes, ó Virgem bem-aventurada, que só as virgens cantam o cântico novo e seguem por toda parte o Cordeiro? Preceito, não digo, mas nem sequer conselho ou exemplo encontrastes; entretanto a unção divina de tudo vos instruiu.
O Verbo de Deus, vivo e eficaz, fêz-se vosso Mestre, antes de ser vosso Filho. Instruiu-vos a alma, antes de se revestir de vossa carne. Pelo Cristo, fazeis voto de permanecer virgem, antes de saber que devíeis tornar-vos sua mãe.
Escolheis ser alvo de desprezo em Israel e eis que a maldição se transforma em benção” (III Homilia sobre o “Missus est”).
A virgindade tem por companheira inseparável a humildade, que constitui outra gema preciosa a ornar o diadema da Rainha do céu.
Eis como Bernardo louva a humildade de Maria: “Quão grande e preciosa é a virtude da humildade unida a tanta pureza e inocência, nesta alma isenta de todo pecado e ornada com tal plenitude de graças! Donde vos vem tão grande humildade, ó bem-aventurada Virgem? Bem digna era esta virtude de atrair os olhares do Senhor, de enamorá-lo com sua beleza e fazer com que o divino Rei, atraído pelo seu suavíssimo aroma, baixasse de sua eterna morada no seio do Pai. Vede como se harmonizam com o cântico nupcial as palavras da Virgem, cujo seio se tornou o tálamo do Esposo: “O Senhor olhou á humildade de sua serva” (Lc 1, 48). Ouvi ainda a sua voz no sagrado epitalâmio: “Quando o Rei repousava em seu leito, meu nardo espalhou o seu perfume” (Cânt 1, 11). O nardo é uma modesta planta, símbolo da humildade, cuja fragrância e beleza encontraram graça diante de Deus” (IV Sermão para a Assunção da Virgem Maria).
Ao elevadíssimo conceito da grandeza e santidade de Maria, é consentâneo que se una no coração de Bernardo a mais terna e ilimitada confiança no poder de sua intercessão. Para o abade de Claraval, de acordo aliás com a Igreja, que presta à Mãe de Deus o culto de hiperdulia, a Virgem SS. não é apenas uma intercessora entre muitos outros santos, mas a Medianeira por excelência, o caminho régio, que conduz a Cristo, o aqueduto pelo qual se derramam em nós as águas da graça divina.
“A Virgem SS. — escreve o santo — é o caminho régio, pelo qual veio a nós o Salvador, qual Esposo saindo do tálamo nupcial. Seja nosso empenho subir por este caminho àquele que, por ele, desceu a nós, por Maria alcançar a graça de quem por ela veio à nossa miséria. Por vós, ó bendita, que encontrastes graça diante de Deus, progenitora da vida, mãe da salvação, tenhamos acesso junto ao vosso Filho; que por vós nos receba, como por vós nos foi dado. Vossa pureza escuse diante dele a nossa corrupção; vossa humildade, tão agradável a Deus, obtenha perdão à nossa vaidade. Vossa caridade cubra a multidão de nossos pecados; vossa gloriosa fecundidade nos torne fecundos em méritos. O’ Senhora, Medianeira e Advogada nossa, reconciliai-nos com vosso Filho, recomendai-nos e apresentai-nos a Ele” (II Sermão para o Advento).
Perdoe-nos o leitor essas longas citações. Para delinear a fisionomia espiritual de nosso santo, era necessário mostrar que um de seus traços mais característicos foi a devoção ardente e filial para com Nossa Senhora. A veneração para com a Virgem SS. imprimiu em sua santidade esse cunho de pureza, doçura e unção, peculiar àqueles que gozam de sua maternal proteção. Essa ardente piedade não provinha apenas do sentimento, mas baseava-se em motivos de fé. Ouçamos ainda o ilustre Doutor expor as razões que temos de honrar a Mãe de Deus: “Do intimo de nossos corações, com todos os afetos e desejos, devemos venerar Maria, pois tal é a vontade de Deus, querendo que tudo nos viesse por Maria. Temíeis aproximar-vos do Pai; escondíeis-vos assustados ao som de sua voz: Ele vos deu Jesus por Mediador. Que não obterá do Pai um tal Filho? Mas ainda receais chegar-vos ao Filho, não obstante ser vosso irmão, experimentado em tudo, exceto no pecado, para se tornar misericordioso. Foi Maria quem vo-lo deu por irmão. Receais contudo a Majestade divina, pois, embora se tenha feito homem, é sempre Deus. Quereis uma advogada junto dele? Recorrei a Maria, nela só há a natureza humana, isenta porém de toda culpa. Ela será atendida, por causa da reverência de que é digna. Sim, o Filho atenderá sua Mãe e o Pai atenderá o Filho. Eis a escada dos pecadores, o objeto de minha máxima confiança e toda a causa de minha esperança” (Sermão para a Natividade de Nossa Senhora).
Diversas orações são atribuídas a São Bernardo, entre as quais a antífona “Ave, Rainha dos Céus”, que a Igreja inseriu na Liturgia. Quem não conhece o “Lembrai-vos”, terna expressão de fé na bondade compassiva da Mãe celestial, a quem nunca se recorre em vão? Se todas as orações atribuídas a Bernardo não são da sua lavra, traduzem contudo sentimentos e ideias, que se encontram nos escritos do Santo.
Há quem censure a Bernardo não haver sustentado o privilégio da Imaculada Conceição de Maria. Em defesa do Santo, pode-se alegar que no seu tempo a Igreja ainda não definira este dogma. Aliás, em carta dirigida aos Cônegos de Lião (Carta CLXXIV), aos quais Bernardo repreende por celebrarem a Festa da Conceição da Virgem, sem autorização da Santa Sé, lemos as seguintes palavras, que provam sua absoluta submissão às decisões da Santa Igreja: “O que eu disse, seja tomado sem prejuízo da opinião de pessoas mais sábias. Em toda esta matéria, como em outras semelhantes, submeto-me à autoridade e exame mormente da Igreja Romana, pronto a corrigir qualquer opinião minha, em desacordo com a sua”.
Não se engana, pois, a tradição cristã, que dá a São Bernardo lugar saliente entre os grandes servos de Maria. Em Lourdes, na grande praça, ornada com imagens dos Santos mais devotos da Virgem, destaca-se a estátua de Bernardo, qual testemunho de seu imperecível amor a Maria.
Na sua “Divina Comédia” é a S. Bernardo que Dante atribui nos paramos celestiais o papel de guia e introdutor ao trono da excelsa Soberana. As palavras que põe nos lábios do Santo bem exprimem a confiança não só do poeta senão também de toda a Cristandade no valimento de Bernardo junto à Mãe de Deus:
A Rainha do Céu, por quem me abraso Todo de amor, mercês não me recusa, Visto que sou o seu fiel Bernardo (Divina Comédia, Paraíso: Canto XXXI. Trad. portuguesa pelo Barão da Vila da Barra).