Apocalipse de Paulo [KDNH]

Biblioteca de Nag Hammadi
O Apocalipse de Paulo (V,2)
Tradução inédita de J. M. Rosenstiehl (BNH). (trad. em português de Álvaro Campos [KDNH])

Em 2Cor 12,2-4, Paulo fala de arrebatamento ao terceiro céu, onde ouviu palavras inefáveis. É essa evocação que se encontra subjacente a este apocalipse mais ou menos gnóstico, que faz o apóstolo subir do quarto para o décimo céu. É abundante o simbolismo da apocalíptica judaica, mesclado com elementos da religião popular.

Assim, por exemplo, na montanha de Jericó, Paulo encontra inicialmente uma criancinha, que o guia para a Jerusalém do alto, onde um Espírito santo o arrebata até o terceiro e depois ao quarto céu:

(Paulo) respondeu-lhe, dizendo: “(Por que) caminho (poderei subir) a Jerusalém?” A criancinha (respondeu, dizendo): “Diz teu nome (para que eu te faça conhecer) o caminho”. (A criancinha) sabia (quem era Paulo). Ela queria acompanhá-lo por suas palavras com (o objetivo) de encontrar oportunidade de conversar com ele. A criancinha recomeçou, dizendo: “Eu sei quem tu és, Paulo: tu és aquele que foi abençoado já no seio de tua mãe. Como eu (vim) em tua direção para que tu (subas a Jerusalém), para junto de teus companheiros (apóstolos), por essa razão (eu fui enviado para junto de ti). Eu sou o Espírito que permanece contigo” (p. 18,3-22).

À porta do quarto céu, Paulo assiste ao processo de uma alma pecadora, julgada por um guarda1:

E eu vi no quarto céu, vi então os anjos assemelhando-se a Deus, os anjos levando uma alma para fora da terra dos mortos. Eles a colocaram na porta do quarto céu. E os anjos a fustigavam. A alma, tornando a si, disse: “Qual foi o pecado que eu cometi no mundo?” O guarda que senta no quarto céu retomou a palavra e disse: “Tu não devias cometer todas as iniquidades que ocorrem no mundo dos mortos”. A alma retrucou, dizendo: “Traz testemunhas para que (te informem) contra que corpo eu cometi a iniquidade”. (“Desejas que se traga um livro2 para lê-la?”) E as três testemunhas vieram. A primeira tomou a palavra e disse: “(Será que) não fui eu que estive no corpo na segunda hora (…)? Eu me lancei contra ti a ponto de (ficares cheio) de cólera, de irritação e de ciúme”. E a segunda tomou a palavra e disse: “Será que não fui eu que estava no mundo? E eu entrei na quinta hora, vi-te e te desejei. E eis que agora, então, eu te acuso dos assassínios que tu cometeste”. A terceira tomou a palavra e disse: “Será que não fui eu que vim a ti na décima segunda hora do dia, no momento em que o sol ia deitar-se? Eu dei-te obscuridade até que tu houvesses acabado teus pecados”3. Quando a alma ouviu essas coisas, olhou para baixo, toda angustiada. E então ela olhou para o alto, mas foi lançada para baixo. Logo que foi lançada para baixo, a alma (foi) para um corpo que havia sido preparado (para ela). E eis que a causa estava julgada (p. 20,5-21,22).

Paulo consegue passar e reencontra o Espírito, que o introduz por sucessivas portas. O diálogo com um ancião, no sétimo céu, mostra a visão gnóstica do tratado, que veio libertar a alma deste baixo mundo:

(Eu vi) um Ancião (…) no sétimo céu, que iluminava (sete) vezes mais do que o sol. O Ancião tomou a palavra e (me) disse: “Onde vais, Paulo, bem-aventurado e posto à parte desde o seio de tua mãe?” Eu olhava para o Espírito e ele me fazia sinal com a cabeça, dizendo-me: “Fala-lhe!” Eu tomei a palavra e disse ao Ancião: “Eu vou para o lugar de onde saí”. E o Ancião me respondeu: “De onde és tu?” Respondi novamente, dizendo: “Eu vou descer (Cf. Ef 4,8-9) até o mundo dos mortos, a fim de tornar cativo o cativeiro que foi feito cativo no cativeiro de Babilônia”. O Ancião me respondeu, dizendo: “Como poderás tu me escapar? Olha e vê esses Principados e essas Autoridades!” O Espírito retomou a palavra e disse: “Dá-lhe o sinal que está em tua mão e (ele) te abrirá”. Voltou sua (face) para baixo, em direção de sua Criação e daqueles que são suas Autoridades. E (então) abriu-se o sétimo céu e nós subimos em direção à Octoade. E eu vi os doze apóstolos, que me saudaram (p. 22,25-24,3).

Finalmente, Paulo reencontrou seus “companheiros em espírito” no décimo céu. E agora, segundo a concepção gnóstica, reintegrou-se em sua verdadeira natureza:

E nós subimos ao nono céu. Eu saudei todos aqueles que se encontravam no nono céu. E nós subimos ao décimo céu. E eu saudei os meus companheiros em espírito (p. 24,3-8).

Nesse apocalipse, Paulo representa o modelo da alma justa subindo ao céu. A alma malvada rejeitada para baixo contrapõe-se como figura antitética. Calcula-se que esse livreto tenha sido redigido por volta do ano de 150, devido à sua proximidade com a literatura apócrifa e intertestamentária.


  1. São os arcontes que querem impedir as almas justas de chegarem ao Pleroma. 

  2. É o livro no qual estão escritas as boas e aas más ações. 

  3. Os três pecados de que a alma é acusada são o ciúme, o desejo e assassínios; por fim, pecados noturnos.