Segundo o título, que aparece no início e no final da obra, trata-se de um apocalipse; mas isto é desenvolvido no âmbito de um testamento. Como costuma acontecer nos “testamentos”, o testador, neste caso Adão, começa por destacar alguns traços da sua vida: Adão conta ao seu filho Sete como foi criado andrógino na glória que advém do conhecimento do verdadeiro Deus, e como perdeu essa glória devido à ira do Deus Criador que o dividiu em dois, enquanto Sete preservou o reflexo dessa glória, já que ela vinha de “outra geração”; por isso Adão lhe deu esse nome (64,1-65,23).
Adão relata então uma revelação que teve em seus sonhos: três homens que não vieram do Criador o convidaram a acordar do sono, agora identificado com a ignorância. Isto faz Adão e Eva suspirarem, e então o Criador intervém, lembrando a Adão, com palavras tiradas de Gn 2,7, como ele o criou. Adão cai novamente não apenas na ignorância, mas no poder da morte. Mas através dessa revelação, Adão recebe a notícia do que acontecerá no futuro e no fim dos tempos aos descendentes de Set, os gnósticos (65,24-67,14).
No livro como um todo, essa revelação que Adão recebe nos sonhos tem a função de ser a primeira iluminação, ou o primeiro passo do Iluminador, que motiva a intervenção irada do Criador. É também o ponto de partida para que Set e seus descendentes obtenham o verdadeiro conhecimento e mais uma vez despertem a ira do Criador, que tentará destruí-los com o dilúvio. Esta é a primeira perseguição do Criador contra os gnósticos, que são então salvos por grandes anjos e levados ao lugar do espírito (67,15-69,24).
Várias tradições judaicas em torno de Adão foram retrabalhadas aqui num sentido gnóstico. Por um lado, o testamento de Adão a Sete, motivo frequente nas obras judaicas e cristãs, é recolhido e transformado ao fazer de Adão o revelador da doutrina gnóstica sobre a perda da glória e do conhecimento original do homem (64, 1-65 ,23). Apocalipse de Adão [ApAd] supõe uma história semelhante à desenvolvida, por exemplo, em Apocalipse de João, Hipóstases dos Arcontes e Tratado sem Título do Codex Bruciano (Da Origem do Mundo). Por outro lado, na ApAd é introduzida outra reformulação gnóstica da figura de Adão, considerando-o o primeiro a despertar do sono da ignorância através de uma revelação e a ser, a partir daí, o transmissor do conhecimento para Set e seus descendentes. Na trama do livro, esta revelação é ao mesmo tempo o início do desenvolvimento do tema central: as três vindas do Iluminador (cf. 76,8) e os três tempos da geração gnóstica, com o consequentes perseguições do Criador O esquema das três vindas do Salvador, embora desenvolvido de forma diversa, é um tema comum em vários escritos gnósticos. ApAd caracteriza-se por apresentar as duas primeiras vindas no fio das tradições hagádicas judaicas em torno do Gênesis, e dando-lhes uma orientação apocalíptica ao dividir a história em três períodos, os dois primeiros culminando com o dilúvio de água (69:2-9) e o dilúvio de fogo (75:9-16) respectivamente.
A segunda manifestação da geração dos gnósticos ocorre após o dilúvio. O Criador promete a terra a Noé em troca de Noé e seus descendentes o reconhecerem como Deus. Mas antes de Noé aparecem outros homens do conhecimento eterno que são como “a nuvem de grande luz”, motivando mais uma vez a questão do Criador. Na trama da ApAd esses homens representam a segunda vinda dos portadores da iluminação. Noé recebe a terra e sujeita seus filhos à servidão do Criador. Sem, por sua vez, também faz um pacto especial; Os descendentes de Cam e Jafé formam doze reinos, mas quatrocentos mil homens de seus descendentes mudam-se para a terra daqueles outros homens que apareceram antes de Noé. Agora são aqueles submetidos ao Criador que lhe perguntam – aqui chamado Sacia – sobre o poder daqueles homens, e o Criador envia fogo e enxofre para destruí-los. É o segundo castigo, que provavelmente alude a Sodoma e Gomorra, locais que, segundo Eva (NHC III 60,12-14; IV 74,17-75,4), são considerados por alguns como a morada dos gnósticos. Mas novamente esses homens são salvos por grandes nuvens luminosas e pela descida de Abrasax, Sábio e Gamaliel (70,4-76,7).
Sob a representação de ApAd ressoa a história de Israel (Sem) e dos gentios (Cam e Jafé); mas o significado da passagem permanece obscuro. Trata-se de concentrar-se em dois momentos de toda a história, antes de descrever a chegada do fim dos tempos, recurso frequente nas visões apocalípticas. Num contexto cristão não-gnóstico, esses quatrocentos mil poderiam representar a Igreja como um número simbólico de gentios que se juntam àqueles que conhecem o verdadeiro Deus. A resposta sobre o Iluminador que os pertencentes ao décimo terceiro reino dariam mais tarde (cf. 80,10-17) poderia ser uma característica que apoiaria um significado tão original daquele grupo. Mas aqui a elaboração gnóstica orienta a representação apocalíptica em outra direção: os gnósticos, como reconhecedores do verdadeiro Deus, existiram na história fora do povo judeu. Por causa do nome dado nesta passagem ao Criador (Sacia), e dos nomes dos anjos salvadores, ApAd se conecta, ainda que superficialmente, com outros textos de Nag Hammadi.
A terceira manifestação dos gnósticos apresenta características especiais. Agora o Iluminador chega “pela terceira vez com grande glória” (76,8-15), levanta os gnósticos dos descendentes de Cam e Jafé, e realiza sinais e prodígios que motivam a questão do Criador e a perseguição de “aquele homem.” (77.6-9). É a terceira perseguição dos poderes do Criador, que agora recai exclusivamente sobre a carne do Iluminador. Mas a sua glória passará para os gnósticos sem ser descoberta pelos poderes, que, em vez disso, invocarão erroneamente o seu nome, perguntando-se de onde ele vem e como “veio à água” (77,9-28). As respostas falsas de treze reinos são aqui introduzidas, em contraste com a resposta verdadeira, aquela daqueles que não têm rei sobre eles (77,28-83,4). A seguir, numa cena de julgamento final, há reconhecimento universal tanto da glória dos gnósticos quanto do erro daqueles que se submeteram ao Criador e aos seus poderes (83,4-84,3). É aqui que terminariam as revelações de Adão a Sete, contadas no futuro.
A obra continua, porém, com a narração, agora no pretérito, de uma revelação celestial através de uma voz que condena os guardiões do santo batismo e proclama novamente a glória que terão os gnósticos de quem pensa o autor do livro, aqueles que recebem seu conhecimento não através de livros escritos, mas dos santos anjos (84,4-85,18).
Nos escritos da ApAd, a terceira vinda do Iluminador serve, por um lado, para completar o esquema dos três tempos em que chega a iluminação superior e, por outro, para introduzir o tema do batismo. A nível editorial, este último tema pode ser ligado ao da terceira vinda do Iluminador através da alusão “à água* nas treze respostas falsas sobre o Iluminador. Em qualquer caso, é o batismo pelo conhecimento, e não pela água, que monopoliza a atenção na conclusão e é apresentado novamente como a revelação de Adão (85:22-31).
Na narração desta terceira vinda da ApAd, a terminologia apocalíptica continua a ressoar19; mas impõe-se a presença de motivos próprios da gnose, como o abandono pela glória do corpo visível do Iluminador antes de ser punido20 e a controvérsia batismal21. Quais representações estão subjacentes à figura do Iluminador ou quais são as características do grupo gnóstico no qual o ApAd deve ser colocado, depende da interpretação, de outra forma contestada, desta última seção do livro; questão que está ligada ao ambiente e ao momento da escrita.