Antonius Brown

Peter Brown — Corpo e Sociedade
Excertos da tradução em português de Vera Ribeiro

Nos anos que se seguiram a 270, os moradores de uma aldeia do Faium, o Egito, hão de ter visto um rapaz, filho de um abastado senhor de írras, sentado do lado de fora de sua fazenda nos arredores da aldeia, lie lutava com o Demonio para renunciar a seus desejos sexuais: “até s que observavam ficavam cientes da luta dentro dele.” Isso não chegava a surpreender. Antonio tinha cerca de vinte anos. Estava numa idade em que, como diz o Talmud, o rapaz “é como um cavalo relinchante, que adorna sua aparência e anseia por uma esposa”. Antonio enfrenta as consequências, para um rapaz, de ter-se recusado a dar o passo seguinte natural para a idade adulta. Voltando os olhos para trás, quase um século depois, a Biografia de Antonio dedicou um espaço singularmente pequeno à descrição das tentações especificamente sexuais. A batalha de Antônio com o “demônio da fornicação” foi apresentada como mera preliminar. Superar a “comichão da juventude” implicou, para Antônio, uma batalha drástica, mas misericordiosamente curta: foi parte de um esforço muito maior de romper o cordão umbilical que o ligava a sua aldeia. No curso normal dos acontecimentos, os aldeães haveriam de ter a expectativa de reter Antônio, fornecendo-lhe uma noiva. A luta pela superação de suas necessidades sexuais, portanto, foi um subproduto necessário da aniquilação auto-imposta da condição social de Antônio como um todo, que se produziu depois de ele haver abandonado a fortuna, doado seu dinheiro aos pobres da região, assentado sua irmã como virgem consagrada e assumido sua posição às margens do deserto, em lugares “preservados do calcar das passadas humanas”.

Na literatura ascética dos séculos IV e V, a imensidão do deserto egípcio tornou diminutas as realidades do sexo. A Biografia de Antônio, após seus breves capítulos iniciais, passou a apresentar uma história de vida que parece ter-se mantido inalterada por mais oitenta anos. Somente o deserto, aliado às viagens de Antônio por ele, forneceu o mapa em que a Biografia traçou as mudanças profundas na pessoa de Antônio. Quinze anos passados nos limites da aldeia culminaram na escuridão soturna dos túmulos que marcavam a fronteira entre o deserto e a terra povoada. Depois de 285, Antônio se mudou para uma fortaleza abandonada, do outro lado do Nilo, dali emergindo por volta de 305 para reunir seus discípulos. Depois de 313, encaminhou-se — por trilhas percorridas apenas pelos nômades (cuja língua, como egípcio das regiões povoadas, ele não há de ter compartilhado) — para o deserto oriental, perto do Mar Vermelho. Era o lugar de seu desejo mais íntimo. Ali se instalou até sua morte, em 356, “em plena magnificência, qual um rei em seu palácio”. O silêncio da “Montanha de Santo Antônio” espelhou, finalmente, a imensa serenidade que se espalhara por seu coração.