Agostinho Sermão 237 Quarta de Páscoa

Agostinho de Hipona — QUARTA-FEIRA DE PÁSCOA
1. Acabamos de ler hoje o que se seguia da ressurreição do Senhor no Evangelho segundo S. Lucas, onde ouvimos que o Senhor apareceu no meio dos discípulos que estavam discutindo a respeito da sua ressurreição e não acreditavam. Tão inesperada foi e tão incrível a aparição, que com os olhos n’Ele não O viam. Viam vivo aquele corpo que tinham pranteado morto, viam de pé entre si O que tinham chorado quando estava crucificado, viam-No pois, mas como não criam que seus olhos vissem a verdade, cuidavam que se enganavam. «Julgavam, como ouvistes, que viam um espírito» (Lc 24, 37).

O que mais tarde creram de Cristo péssimos hereges, primeiro o creram mal seguros os Apóstolos. Efetivamente há os hoje que não creem que Cristo tenha tido carne, pois que negam o parto da Virgem e não querem crer que Ele tenha nascido de mulher. Toda esta disposição da nossa salvação, segundo a qual se fez homem para encontrar o homem quem, sendo Deus, tinha feito o homem, tudo isto, que Cristo para remissão dos nossos pecados derramou sangue verdadeiro e não falso e que com sangue verdadeiro e seu destruiu (Col 2, 14) o quirógrafo ou recibo1 dos nossos pecados, tudo isto forcejam por destruí-lo hereges abomináveis, tudo isto, como os maniqueus, o descreem: que tenha aparecido o Senhor aos olhos dos homens, isso era espírito e não carne.


  1. Os Romanos, como outros povos da Antiguidade, costumavam redigir um documento para ficarem com uma prova dos seus contratos; tinham adotado o termo chirographum, ao lado do sinônimo dele, cautio. As versões latinas para Col 2, 14 não tiveram dificuldade em empregar uma palavra que já era de uso corrente. Em toda a literatura patrística foi constantemente retomada esta imagem. Orígenes, comentando o texto de S. Paulo, explicava: «Este ato de que fala era um «recibo» dos nossos pecados. Pois cada um de nós é devedor dos próprios pecados e escreve uma nota (em que reconhece) o seu pecado» (Homílias sobre o Gênesis XIII, 4, trad. L. Doutreleau. SC 7). Para Tertuliano, o homem no batismo recobra a sua letra de reconhecimento de dívidas, em conformidade com o contexto de S. Paulo: «libertando o homem pelo batismo a quem então é devolvido o quirógrafo de morte …» (De pudicitia 19). Para Agostinho, que interpreta com felicidade o fim do versículo: affixens illud cruci (cravando-o na cruz), o sangue de Cristo lavou ou apagou o quirógrafo: «Tinha-se escrito uma caução (cautio) dos nossos pecados, o diabo tinha contra nós um reconhecimento de dívidas (chirographum) … Todos éramos devedores, nascíamos com esta dívida hereditária: foi derramado o sangue do que era sem pecado e destruiu o documento escrito dos nossos pecados» (S Guelf. 9, 2). «Foi morto o que não era devedor, e apagou (diluit) o reconhecimento ou declaração de dívidas (chiroragratphum debitorum)» S Mai 87, 3: «Estejamos sossegados, o diabo possuía contra nós o documento escrito da nossa escravidão (cautionem servitutis), mas o sangue de Cristo apagou-o» (In Jo. Ep. 1, 5).