Julián Mariás — Agostinho de Hipona
Passa-se do mundo antigo a outro mundo novo mediante uma inflexão um tanto brusca, assinalada pelo advento do cristianismo. Naturalmente, esta mutação não acontece com demasiada rapidez nem na história nem na filosofia; porém a falta de rapidez não suprime seu caráter súbito: quero dizer com isto que a alteração sobrevinda ao mundo greco-romano, por um lado, e à filosofia helênica, por outro, excede o mero acontecer histórico em sentido rigoroso. Para nos atermos à filosofia, baste dizer que aquela que dominará na Europa, na Idade Média, não emerge da evolução interna do pensamento grego e sim da irrupção nele de pressupostos totalmente alheios, primariamente a interpretação do mundo como realidade criada, sustentada ontologicamente no ser de Deus.
O momento capital em que acontece esta mutação filosófica é Santo Agostinho. É claro que não se pode entender isoladamente, e que sua existência seria inconcebível sem um longo labor mental que preparou e fez possível sua filosofia; porém aqui se trata somente de escolher os pontos culminantes e mais representativos, que manifestem com a máxima clareza o sentido do processo intelectual que tentamos assistir. E Santo Agostinho, que é talvez o último homem antigo, não é propriamente medieval mas aquele que faz possível a Idade Média. Esta começa, no âmbito da filosofia, somente cerca do século IX; mas se nutre durante mais de quatro séculos, quase integralmente, do pensamento agostiniano. Por isso Santo Agostinho, embora anterior à filosofia medieval, é sua chave, e ao mesmo tempo torna-se patente nele a articulação da mentalidade helénica com a determinada pelos pressupostos do cristianismo.
Santo Agostinho, nascido em Tagaste, perto de Cartago, em 334, e que morreu como bispo de Hipona no ano 430, nutriu-se do pensamento antigo: Platão e Aristóteles, sobretudo o primeiro, ainda que por via indireta; os estóicos, os epicureus, os acadêmicos, Cícero, Plotino, Porfírio. Conhece-os todos, utiliza-os e com eles tem que dialogar. Tenha-se presente que seus primeiros contatos com o mundo antigo não são os de um cristão; Santo Agostinho, antes de sua conversão, sente-se quase instalado nesse mundo; depois, após sua incorporação ao maniqueísmo, penetra no âmbito complexo das religiões orientais; por último, a partir de sua conversão milanesa, vê toda sua vida anterior através da superior verdade cristã, e deste modo assiste o nascimento, no fundo de seu espírito, de um homem novo: aquele que irá preencher um milênio da história.
Quer conhecer só Deus e a alma — Deum et animam scire cupio —; a propósito do homem, recolhe, sem demasiada insistência, as definições antigas — sicut veteres definierunt —; mas depressa se adianta, guiado pela revelação, que funciona em sua filosofia rigorosamente como um princípio heurístico, como uma incitação à descoberta racional da mais profunda realidade humana. Os passos de Santo Agostinho são de enorme alcance. Dá um novo sentido à medietas ontológica do homem, descobre sua intimidade, alheia ao pensamento grego, e sobretudo o analisa do ponto de vista de seu ser, imagem de Deus. Esta posição é fecundíssima, porque obriga a propor a questão capital do ser pessoal do homem, que, na filosofia grega, ficara oculto, quase ignorado. Note-se que os textos mais agudos de Santo Agostinho acerca do homem não se encontram em nenhuma das obras que se referem diretamente a ele, mas em seu tratado De Trinitate: o intento de compreender — na medida do possível e analogicamente que o seja — o sentido do dogma trinitário obriga a teologia a fazer uma teoria da personalidade, que esclarece ao mesmo tempo a realidade mais profunda do ente humano. O homem, imago Dei, serve de ponto de partida para elevar-se à compreensão de Deus; porém ao investigar a realidade divina, sobretudo em suas relações pessoais, o olhar que se volta para o homem tem que prescindir de tudo o que é só seu, mas não ele mesmo, para apreender a raiz última do humano.
A antropologia agostiniana é a primeira tentativa de entender o homem a partir de si mesmo, a partir de sua interioridade, em lugar de considerá-lo de fora, como uma coisa entre as demais do mundo. Observe-se a presença constante da primeira pessoa nos escritos antropológicos de Santo Agostinho: raramente fala do homem; em geral, diz eu, ego. Por vezes, inclusive, quando começa a falar da realidade humana como de um objeto externo, introduz um sujeito — um personagem — que ponha em sua boca as palavras de Santo Agostinho e as refira a si mesmo. (“Quando estas coisas estão em uma pessoa, como é o homem, alguém nos pode dizer: estas três coisas. . . são minhas…”). E ao mesmo tempo, esta imediatez e proximidade com que aborda o tema do homem obriga-o continuamente a separar-se dele, a transladar-se para a máxima longinqüidade, a referir-se a Deus. O homem agostiniano, por ser autêntico, ele mesmo, envolve em seu conhecimento a referência à Divindade, que se manifesta primariamente nele, como em um espelho.
A atenção dedicada ao tema do homem por Santo Agostinho é extraordinária; quase toda sua obra está cheia de alusões, quando não de referências concretas e consideráveis. Aqui só pude recolher, na maior nudez possível, os pontos capitais de sua meditação. Tenha-se presente que as repetições são frequentíssimas nos escritos agostinianos, visto que reincide muitas vezes, com propósitos diferentes, nas mesmas questões, e que há não poucas variantes nas diversas passagens análogas; um estudo demorado da antropologia agostiniana exigiria levar em conta todas estas diferenças; porém não caberia neste livro. Portanto, me foi necessário escolher entre elas, procurando os fragmentos mais expressivos e concisos.
A bibliografía agostiniana é extremamente copiosa. Baste citar dela as obras seguintes: J. Martin: Saint Augustin (1901); E. Troeltsch: Augustin, die christliche Antike und die Mittelalter (1915); Augustin und die Patristik (1923); M. Schmaus: Die psychologische Trinitatslehre des hl. Augustinus (1927); J. Mausbach: Die Ethik des hl. Augustinus (1909); E. Gilson: Introduction à l’étude de Saint-Agustin (1929). Veja-se também A. Gratry: La connaissance de Dieu (cap. IV).