Excertos de Joachim Jeremias, “A Mensagem Central do Novo Testamento”
Ora, é exatamente o que fez Jesus. Os discípulos devem ter achado muito extraordinário Jesus se dirigir a Deus dizendo “meu Pai”. Não só os quatro Evangelhos atestam que Jesus se dirigia a Deus nestes termos, mas todos eles relatam que o fazia em todas as suas orações1. Há uma única oração de Jesus onde falta o “meu Pai”, e trata-se do grito na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34, par. Mt 27,46), citando o Sl 22,1.
Ainda não dissemos tudo: o que é mais notável é o fato de Jesus, em suas orações, se dirigir a Deus como ao seu Pai, servindo-se da palavra aramaica abbá2. Marcos o afirma categoricamente no seu relato da oração no Getsêmani: “Abbá (Pai)! tudo te é possível: afasta de mim este cálice; todavia, não se faça o que eu quero, mas o que tu queres” (Mc 14,36). Que Jesus tenha utilizado esta mesma palavra abbá também nas suas outras orações, prova-se por uma comparação das formas diferentes que a palavra “pai” toma no grego. Ao lado do vocativo correto páter3 ou páter mou4, encontramos o nominativo ho patér na função de vocativo, o que é incorreto5. Estas passagens do vocativo ao nominativo, que aparecem num só e mesmo lógion (Mt 11,25.26, par. Lc 10, 21) não se podem explicar sem se levar em conta o fato de que a palavra abbá — como o veremos — servia correntemente no aramaico da Palestina no primeiro século, não só como invocativo, mas também para dizer “o pai” (status emphaticus). Digamos, enfim, que sem contar Mc 14,34 e as variantes da palavra “pai” em grego, possuímos uma terceira peça que prova que Jesus dizia Abbá quando rezava. São as duas passagens de Paulo, em Rm 8,15 e G1 4,6. Elas nos informam que as comunidades cristãs diziam “Abbá, ho patér” (Abbá, Pai) e tinham-no como expressão produzida pelo Espírito Santo. Aplica-se isto tanto às comunidades paulinas (Gálatas) como às não-paulinas (Romanos), e não há dúvida de que esta invocação seja um eco das próprias orações de Jesus.
Não se encontra nada de comparável nas orações judaicas do primeiro milênio antes de Cristo. Não existe nenhum exemplo no conjunto das preces do judaísmo antigo — imenso tesouro muito pouco explorado — desta invocação dirigida a Deus como Abbá, nem nas preces propriamente litúrgicas nem nas outras.
Existe apenas uma passagem da literatura judaica tardia, onde a palavra abbá se refere a Deus. É a narração de um acontecimento que se deu pelo fim do séc. 1 a.C. Refere-se a Hanin ha-Nehba, um homem afamado por seu sucesso em orações para obter chuva:
“Quando o mundo precisava de chuva, nossos mestres tinham o costume de lhe mandar as crianças das escolas, que se agarravam ao seu manto e imploravam: Abbá, abbâ habh lan mitra: papai, papai, dá-nos a chuva”. E ele lhe (a Deus) dizia: “Senhor do universo, concede-nos (a chuva) em vista destes que não são ainda capazes de distinguir entre um abbá que tem o poder de dar a chuva e um abbá que não o tem”6.
À primeira vista, parece que temos aí uma amostra em que Deus é chamado de Abbá. Mas devemos considerar duas coisas. Em primeiro lugar, a palavra abbá é aplicada a Deus como que a modo de brincadeira. Hanin apela à misericordia de Deus, adotando o grito: “Papai, papai, dá-nos a chuva”, que as crianças repetem em coro, e chama a Deus de um “Abbá que tem o poder de dar a chuva”, como o fariam as crianças na sua linguagem. Em segundo lugar, e isto é o mais importante, Hanin não se dirige absolutamente a Deus como Abbá; pelo contrário, invoca-o como “Senhor do universo”. Sem dúvida, a história constitui, de certo modo, um prelúdio à afirmação de Jesus dizendo que o Pai celeste sabe do que precisam seus filhos (Mt 6,32 par.), que ele envia a chuva sobre os justos e os injustos (Mt 5,45), e dá coisas boas aos filhos que lhas pedem (Mt 7,11 par., Lc 11,13). Mas isso não nos fornece a prova de um uso de abbá para invocar a Deus. Resta que não ternos nenhum testemunho do uso deste termo com tal referência em todo o judaísmo.
Chegamos a um resultado de importância capital. De um lado, as orações judaicas não contêm um só exemplo do emprego de abbá para dirigir-se a Deus; por outro lado, Jesus a usava sempre quando rezava (com a exceção do grito na cruz em Mc 15,34). Significa que temos aí, incontestavelmente, um traço característico do modo como Jesus, e somente Jesus, se expressava, da sua ipsissima vox.
As razões pelas quais as orações judaicas não se dirigiam a Deus como Abbá, se encontram ao se considerar o fundo linguístico da palavra. Originalmente, abbá fazia parte do balbucio infantil. O Talmud diz: “Quando a criança começa a comer trigo (isto é, quando é desmamada), aprende a dizer abbá e immá” (ou seja, papai e mamãe são as primeiras palavras que ela diz)7. Igualmente, Padres da Igreja, como João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia e Teodoreto de Ciro, os três nascidos em Antioquia de pais ricos, mas, segundo todas as possibilidades, educados por amas sírias, nos dizem, por sua própria experiência, que as criancinhas tinham o costume de chamar seu pai de Abbá. Quando comecei este estudo, que me exigiu alguns anos de trabalho, pensava que Jesus tinha simplesmente adotado este balbucio infantil. Mas não demorei a constatar que esta conclusão era muito apressada, pois ignorava o fato de que já na época pré-cristã, esta palavra, que se originava da linguagem dos bebês, tinha recebido um sentido mais amplo no aramaico da Palestina. Para dirigir-se a seu pai, a forma abbá suplantou a antiga forma abbi, usada no aramaico palestinense até pelo menos o séc. 2 a. C., como constatamos pela documentação. Além disso, abbá tomou o sentido de “meu pai”, e de “o pai”, e substituiu na época até mesmo “seu pai” e “nosso pai”. De tal modo que a palavra não era apenas parte do linguajar das crianças. Os jovens de ambos os sexos também chamavam o próprio pai de Abbá (cf. Lc 15,21), não recorrendo à palavra “Senhor” (Kyrie) a não ser em uso cerimonioso (cf. Mt 21,29-30). Mas, apesar destes desenvolvimentos, jamais caiu no esquecimento o fato de que esta palavra provinha do linguajar infantil.
Eis-nos, pois, autorizados a dizer por que abbá não se usa nas orações judaicas para invocar a Deus: seria desrespeitoso, e portanto impensável para uma mentalidade judaica, chamar a Deus com um nome tão familiar 13. Foi algo de novo, único e inaudito, ter Jesus ousado tomar essa iniciativa e falar a Deus como uma criança fala ao seu pai, com simplicidade, intimidade e sem temor. Portanto, não há dúvida alguma de que a palavra abbá, utilizada por Jesus para dirigir-se a Deus, revela o próprio fundamento de sua comunhão com ele.
NOTAS
21 vezes (16 vezes se os paralelos forem contados uma só vez). ↩
O acento está na última sílaba. ↩
Mt 11,25 par. Lc 10,21; Lc 11,2;22,42;23,34.46; Jo 11,41;12,27s;17,1.5.11.24.25. ↩
Mc 14,36; Mt 11,26 par. Lc 10,21; Rm 8,15; G1 4,6; sem o artigo unicamente nas variantes: Jo 17,5.11.21.24.25. ↩
Talmud da Babilônia, Tratado Ta’anith, 23b. ↩
Talmud da Babilônia, Tratado Berachoth, 40a (Bar.) par. Tratado Sanhedrin, 10b (Bar.). ↩