Tzimtzum

TZIMTZUM
Tsimtsum, TsimTsum, Tsimtsoum
Cabala
Gershom Scholem
Tzimtzum originalmente significa “concentração” ou “contração”, mas se usado em linguagem cabalística é melhor traduzido por “retração” ou “retirada”. Isaac Luria, assim como sua fonte imediata, um breve tratado, quase completamente esquecido, proveniente do século XIII1 partiam neste caso, de uma ideia talmúdica que Luria, porém, para dizê-lo em poucas palavras, pôs de cabeça para baixo, acreditando tê-la colocado de pés no chão. O Midrasch — em algumas sentenças de mestres do século III — diz ocasionalmente que Deus concentrou Sua Shekinah, Sua presença divina, no Santo dos Santos, lá onde se acham os Querubim, embora todo seu poder estivesse concentrado e contraído num único ponto. Temos aqui a origem do termo Tzimtzum, enquanto que o próprio objeto é precisamente o oposto desta ideia: para os cabalistas da escola de Luria Tzimtzum não significa a concentração de Deus em um ponto, mas sua retirada de um ponto.

Que significa isso? Em poucas palavras significa que a existência do universo é possível devido ao processo de contração em Deus. Luria começa pondo uma questão que parece naturalista e, se quiserem, um tanto crua. Como pode existir um mundo se Deus está em toda parte? Se Deus é “tudo em tudo”, como podem existir coisas que não são Deus? Como pode Deus criar o mundo a partir do nada se não existe o nada? Este é o problema. A solução tornou-se, apesar da forma crua com que ele a apresentou, da mais alta importância na historia do pensamento do cabalismo posterior. De acordo com Luria, Deus foi compelido a dar espaço ao mundo, abandonando, por assim dizer, uma região dentro Dele, uma espécie de espaço primordial místico de onde Ele se retirou a fim de voltar aí no ato da Criação e Revelação. O primeiro ato do En-Soph, o Sem-Fim, é por conseguinte não um passo para fora mas um passo para dentro, um movimento de retração, de retrocesso para si mesmo, de retirada para dentro de si. Em lugar da emanação, temos o oposto, a contração. O Deus, que revelou a si mesmo em firmes contornos, foi substituído por outro que desceu mais profundamente nos recônditos de Seu próprio Ser, que Se concentrou em Si Mesmo, e que assim procedeu desde o inicio da criação. Na realidade, este modo de ver se afigurou com frequência, mesmo para aqueles que lhe deram uma formulação teórica, como algo que beirava a blasfêmia. Contudo volta a aflorar repetidamente, modificado apenas exteriormente por um frágil “como se” ou “por assim dizer”.

Somos tentados a interpretar esse retraimento de Deus dentro de seu próprio Ser, em termos de Exílio, do seu Próprio banimento de Sua totalidade para a mais profunda reclusão. Vista desse prisma, a ideia do Tzimtzum é o mais profundo símbolo do Exílio de que se poderia pensar, mais profundo até que a “Ruptura dos Vasos”. Na “Ruptura dos Vasos”, que pretendo tratar mais adiante, algo do Ser Divino é exilado fora Dele, enquanto que se poderia considerar o Tzimtzum como um exílio dentro Dele. O primeiro de todos os atos não é um ato de revelação mas de limitação. Só no segundo ato é que Deus emite um raio de Sua luz e começa sua revelação, ou melhor, seu desdobramento como Deus, o Criador, no espaço primordial de sua própria criação. Mais que isso, cada novo ato de emanação e manifestação é precedido por outro de concentração e retração. Em outras palavras, o processo cósmico torna-se duplo. Cada, estágio envolve um esforço duplo, isto é, a luz que reflui a Deus e aquele que flui Dele, e não fosse essa tensão perpétua, este sempre repetido esforço com o qual Deus Se contém, nada no mundo existiria. Há força e profundidade fascinantes nesta doutrina. O paradoxo do Tzimtzum — como disse Jacob Emden — é a única tentativa séria jamais envidada com o fito de dar substância à ideia da Criação a partir do Nada. Incidentalmente, o fato de uma ideia que à primeira vista parece tão racionalista como a “Criação a partir do Nada” se converter, diante do nosso exame, tão facilmente em mistério teosófico mostra-nos quão ilusória é na realidade a aparente simplicidade dos fundamentos religiosos.

Além de sua importância intrínseca, a teoria do Tzimtzum também serviu de contrapeso ao panteísmo, que alguns estudiosos jugam estar implícito na teoria da emanação. Não só existe um resíduo de manifestação divina em cada ser, mas, sob o ângulo do Tzimtzum, adquire também uma realidade própria que o protege contra o perigo de dissolução no ser não-individual do divino “tudo em tudo”. Luria mesmo foi o exemplo vivo de um declarado místico teísta. Ele deu ao Zohar, apesar de todo o seu panteísmo intrínseco, uma interpretação estritamente teísta. Portanto, nada mais natural que as tendencias panteístas, que começaram a ganhar importância no cabalismo, especialmente desde o período da Renascença europeia, hajam colidido com a doutrina luriânica do Tzimtzum, e que tenham sido feitas tentativas de reinterpretá-las de modo a despojá-las de seu significado. A questão de saber se era preciso interpretá-las literal ou metaforicamente veio a converter-se, muitas vezes, em símbolo da luta entre tendencias panteístas e teístas, a tal ponto que no cabalismo posterior a posição que um autor ocupava nesse embate está em certa medida implícita em sua posição quanto ao problema do Tzimtzum. Pois se o Tzimtzum é mera metáfora á qual não corresponde nenhum ato ou ocorrência real, por mais velado e misterioso que seja, então a questão de saber como algo que não é Deus pode realmente existir continua sem solução. Se o Tzimtzum — como alguns cabalistas posteriores tentaram provar — é apenas um véu de Maia que encobre a essência divina na consciência da criatura e lhe dá a ilusão de autoconsciência, na qual ela pode reconhecer-se como separada de Deus, então é necessário apenas uma leve mudança para que o coração possa sentir a unidade da subsistência divina em todas as coisas. Tal mudança destruiria por força a concepção do Tzimtzum como uma concepção destinada a fornecer uma explicação para a existência de algo que não Deus.



  1. Ms. Brit. Museum 711, f. 140b: “Achei a seguinte passagem no livro dos cabalistas. Como foi que Deus suscitou o mundo e o criou? Como um homem que reúne o seu folego e se contrai, também Deus concentrou sua luz em um palmo de si, e o mundo permaneceu como escuridão. Nessa escuridão suscitou pedras e rochedos, para estabelecer por meio destes os caminhos que se chamam a Maravilha da Sabedoria”. Esta explanação baseia-se na interpretação que Nachmânides dá às primeiras palavras do Sepher Yetsirah; cf. Kiriat Sefer, vol. IV (1930), p. 402.