LOGIA JESUS — SINAL DE ABRAÃO (Jo VIII 31-59)
EVANGELHO DE JESUS: Jo 8:31-59
Joaquim Carreira das Neves: ESCRITOS DE SÃO JOÃO [CNEJ]
Nesta unidade, o nome de Abraão aparece onze vezes e o nome “pai” catorze. Os judeus afirmam que têm por pai Abraão e Jesus que tem por Pai o próprio Deus de quem Abraão é filho e “se alegrou pensando em ver o meu dia; viu-o e ficou feliz” (v. 56).
O mistério da identidade da pessoa de Jesus, na cristologia joanica, tinha que passar também pela pessoa incontornável de Abraão. E na fonte “abraâmica” que tudo começa para judeus, cristãos e islâmicos.
As comunidades cristãs primitivas leram e releram as Escrituras Hebraicas como profecia da pessoa de Jesus e do “novo Israel” cristão. E sem dúvida que as duas personagens mais importantes nas Escrituras Hebraicas são Abraão e Moisés. Assim se explica que o quarto evangelho lhes dê tanta importância, mas o mesmo se diga da tradição dos evangelhos sinópticos em opor o mundo fechado dos judeus, cingidos a uma religião etnocêntrica em volta de Abraão, ao mundo aberto de Jesus, a começar por João Batista (cf. Mt 3, 9 e par.: “Deus até pode fazer das pedras filhos de Abraão…”; Mt 8, 11-12: “Digo-vos que, do Oriente e do Ocidente, muitos virão sentar-se à mesa do banquete com Abraão, Isaac e Jacob, no Reino do Céu, ao passo que os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores…”).
Esta grande unidade literária à volta da pessoa de Abraão é desencadeada pela nova introdução de Jesus sobre a “verdade” e a “liberdade”: “Então, Jesus pôs-se a dizer aos judeus que nele tinham acreditado: ‘Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres’” (vv. 31-32).
Reparemos que Jesus se refere aos judeus “que nele tinham acreditado”, na sequência do v. 30. O problema surge, então, das questões entre os judeus crentes que continuavam a discutir, nas comunidades joanicas, sobre a relação entre o judaísmo e a fé cristã, entre Abraão como “pai” e Deus-YHWH -“Pai” e entre Jesus-Messias-Filho e sua relação com “Deus-YHWH-seu Pai”.
No capítulo sexto foram a “carne” e o “sangue” “eucarísticos” que “escandalizaram”, agora é a pessoa de Abraão. Para os judeus, a “verdade” e consequente “liberdade” — só quem vive na verdade possui também a liberdade -, consiste em serem filhos de Abraão, mas para Jesus — o Jesus das comunidades joaninas —, os judeus cometeram um grande pecado: mataram Jesus porque se deixaram levar pelo seu “pai” — o diabo. Toda a dialéctica gira à volta do Pai–Deus, do pai–Abraão e do pai-diabo (v. 37: “Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra”, v. 38: “Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai”, v. 39.”Eles replicaram-lhe: o nosso Pai é Abraão! Jesus disse-lhes:’Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão!’”, v. 40: “Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade”…v. 44: “vós tendes por pai o diabo… Ele foi assassino desde o princípio, e não esteve pela verdade, porque nele não há verdade… v. 53: “Porventura és tu maior que o nosso pai Abraão… v. 28b: “Antes de Abraão existir, EU SOU!”).
Uma vez mais, a cristologia alta do quarto evangelho nasce na nova teologia sobre a pessoa do Pai e sua relação com o “homem” Jesus, enquanto que a teologia dos judeus partia apenas de Abraão, seu pai na fé. Para o Jesus joanino, o fato dos judeus não darem o “salto” da fé cristã tem a ver com o “pai da mentira” — Satã (“diabolos”) — que lhes fechou as portas.
A afirmação de Jesus: “Vós tendes por pai o diabo, e quereis realizar os desejos do vosso pai” (v. 44) é a mais antijudaica de todo o Novo Testamento. Não saiu da boca do Jesus da história, mas do Jesus joanino, fruto das inimizades religiosas entre judeus e cristãos. Mesmo assim, a verdade é que durante séculos serviu como argumento para as “bulhas religiosas” entre judeus e cristãos e fogueiras inquisitoriais da “santa” Inquisição.
A unidade, como habitualmente, termina com mais uma anotação do redator: “Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do templo” (v. 59). Como só se matam por lapidação os “blasfemos” (Lv 24,13-16), Jesus acabava de pronunciar uma blasfêmia contínua ao afirmar que existia antes de Abraão (v. 58), que Abraão exultou pensando no seu dia messiânico (v. 56), que Deus-YHWH era o seu Pai e ele o seu Filho (vv. 42. 54), que o diabo era o pai dos judeus, mesmo daqueles que começaram por acreditar em Jesus e acabaram por não acreditar (v. 44).
VIDE: Servos do Diabo, Antes que Abraão fosse