Multiplicidade de eus

ALMA — MULTIPLICIDADE DE EUS

VIDE: LEGIO; EGO; EU; SI MESMO; EUS; ALMA; APOSTOLADO

Segundo certos ensinamentos, não sou uma unidade, não sou mim mesmo, singular e único. Sou «nós», ou como diz o NT, «meu nome é legião». Esta multiplicidade de «eus» é fruto da desordem que em em mim mesmo se formou no curso de minha educação. Todos estes «eus» são alimentados, são extensões de uma só energia divina que me é dada, que se perdeu abastecendo minhas paixões e assim constituindo «eus» em mim mesmo. Esta multidão como diz o NT pode seguir a Jesus, vendo seus milagres diários, se encantando, mas ainda incapaz de fazer o trabalho espiritual, a «única coisa necessária». Apenas poucos dentro de mim mesmo se tornam discípulos, eleitos para cumprir o apostolado para os demais «eus». Esta «multiplicidade de eus» tem que ser conduzida por um pequeno grupo de «eus», discípulos sensibilizados pela Palavra, que assim servindo como apóstolos, pregadores em mim mesmo do «único necessário», podem ser chamados de «trabalhadores» a serviço do Verbo, pois reconhecem e creem no Filho do homem, que em nós tem morada. Os trabalhadores da vinha são um exemplo de discípulos, tomados pela ambição de se apossar da vinha.

Ananda Coomaraswamy: ODIAR OS SEUS; CIVILIZAÇÃO

Não só estes mundos são uma cidade ou Eu sou uma cidade, como somos cidades populadas, e não terras desertas, porque Ele as preenche, “estando Ele próprio ali como está e estando muitos dos seus filhos aqui” (Satapatha Brahmana X.5.2.16). “Que, dividindo-se infinitas vezes, enche (purayati)1 estes mundos. . . dele provêm continuamente os seres animados” (Maitri Upanishad V.26). Ou, com referência específica às forças da alma que há dentro da cidade individual, “dividindo-se em cinco partes, Ele fica oculto na caverna do coração. . . Depois, havendo irrompido pelas portas das forças sensíveis, Ele passa a fruir o que sentiu. . . E assim o corpo d’Ele fica em poder da consciência, Ele é o guia desse corpo” (ibid., II.6.d; v. coche). No entanto, a divisão é apenas um modo de dizer, pois Ele continua “não dividido em seres divididos” Bhagavad Gita XIII. 16, XVII.20), ininterrupto (ananta-ram) e por isso deve ser considerado uma presença total e indivisa.


Ouspensky: FRAGMENTOS

“O homem não tem individualidade. Não tem um grande “Eu” único. O homem está fragmentado numa multidão de pequenos “eus”.

“Cada um deles, porém, é capaz de chamar-se a si mesmo de Todo, de agir em nome do Todo, de fazer promessas, tomar decisões, estar de acordo ou não estar de acordo com o que outro “eu” ou o Todo teria que fazer. Isso explica por que as pessoas tão frequentemente tomam decisões e tão raramente as mantêm. Um homem decide levantar cedo a partir do dia seguinte. Um “eu” ou grupo de “eus” toma essa decisão. Mas levantar já é assunto de outro “eu”, que não está absolutamente de acordo e pode até nem ter sido posto a par. Naturalmente o homem não dormirá menos na manhã seguinte e, à noite, tornará a decidir a acordar cedo. Isso pode acarretar consequências muito desagradáveis. Um pequeno “eu” acidental pode fazer uma promessa, não a si mesmo, mas a outra pessoa, em determinado momento, simplesmente por vaidade ou para divertir-se. Depois desaparece. Mas o homem, isto é, o conjunto dos outros “eus”, que estão completamente inocentes, terá talvez que pagar toda a vida por essa brincadeira. A tragédia do ser humano é que qualquer pequeno “eu” tem o poder de assinar promissórias e que o homem, ou seja, o Todo, é que deva fazer face a elas. Vidas inteiras passam-se assim a saldar dívidas contraídas por pequenos “eus” acidentais.

“Os ensinamentos orientais estão cheios de alegorias dedicadas a retratar, desse ponto de vista, a natureza humana.

“Em um deles, o homem é comparado a uma casa sem Amo nem mordomo, ocupada por uma multidão de serviçais. Esses esqueceram completamente seus deveres; ninguém quer cumprir sua tarefa; cada qual se esforça por ser o amo, ainda que por um minuto e, nessa espécie de anarquia, a casa fica ameaçada pelos mais graves perigos. A única possibilidade de salvação é um grupo de serviçais mais sensatos se reunir e eleger um mordomo temporário, isto é, um mordomo-suplente. Esse mordomo-suplente pode então pôr os outros serviçais nos seus lugares e obrigar cada um deles a fazer o seu trabalho: a cozinheira na cozinha, o cocheiro na estrebaria, o jardineiro na horta e assim por diante. Desse modo, a “casa” pode estar pronta para a chegada do verdadeiro mordomo que, por sua vez, preparará a chegada do verdadeiro Amo.

“A comparação do homem com uma casa à espera do amo é frequente nos ensinamentos orientais que conservaram traços do antigo conhecimento e, como sabem, essa ideia também aparece em formas variadas em numerosas parábolas dos Evangelhos.

“Mas, ainda que o homem compreendesse, mesmo do modo mais claro, suas possibilidades, isso não poderia fazê-lo progredir um passo no sentido de sua realização. Para estar em condições de realizar essas possibilidades, deve ter um desejo muito ardente de libertação, deve estar pronto a tudo sacrificar, a tudo arriscar para sua libertação.”


  1. Causativa de pr, que é a raiz contida em pur, por isso popula e até civiliza.