Barbuy
Em notável escrito sobre o pensamento de Kierkegaard, Barbuy define o “ego” usando a própria linguagem deste pensador:
O ego é primeiramente uma síntese consciente de infinito e de finito, que se relaciona consigo mesma e cujo fim é tornar-se ela mesma, o que só pode fazer relacionando-se com Deus, que a colocou como síntese. Salvar-se é tornar-se si mesmo em suas relações com Deus. Este tornar-se si mesmo é certamente um vir-a-ser concreto, que não se pode cumprir nem só num, nem só noutro dos termos da antítese, senão se estabelece a desarmonia, o desespero, pela negação do finito, ou do infinito. O ego deve realizar em si a síntese do finito e do infinito; a evolução consiste pois em afastar-se indefinidamente em si mesmo numa infinitização, mas voltando ao mesmo tempo indefinidamente a si mesmo numa finitização; e enquanto não chega a realizar-se, o ego não é ele mesmo; e não ser si mesmo é desespero.
( Heraldo Barbuy )
Michel Henry
Do Idêntico em cada um – da autodoação da Vida fenomenológica absoluta na Ipseidade essencial do Primeiro Si e, assim, de todo Si concebível – resulta o segundo aspecto da teoria cristã da relação com o outro. Na perspectiva que será a da filosofia moderna, mas também nas representações mais habituais deste fenômeno, a relação com outro é pensada a partir de um primeiro termo que é o próprio ego, mais precisamente este ego que eu sou. É por isso que este primeiro termo aparece como a origem ou o centro a partir do qual a experiência de outro se desdobra. Trata-se de compreender como o ego que eu próprio sou pode atingir outro, o alter ego, e entrar assim em “relação” com ele. Não é possível expor aqui de modo sistemático as razões pelas quais todas as teorias que tomam o ego como ponto de partida de sua relação com o outro fracassaram – a rede de paralogismos em que elas se encerram. Contentar-nos-emos com as seguintes breves observações.
O primeiro paralogismo das teorizações da experiência do outro inevitavelmente compreendido como o outro ego é a pressuposição [353] do próprio ego. Que haja um ego, tanto o outro quanto o meu, é o que é evidente, a ponto de que a própria possibilidade de algo como um ego, a possibilidade de um Si e de uma Ipseidade em geral, não aparece jamais como um problema. Assim, toda teoria da experiência do outro é minada por uma lacuna essencial que torna a priori ininteligível tudo o que ela crê dizer – muito mais, que lhe apaga até a existência. É precisamente a radicalidade da teoria cristã de colocar no fundamento da relação com o outro sua possibilidade mais incontornável, a saber, a própria existência dos egos entre os quais esta relação vai desdobrar-se. Não sua simples existência, para dizer a verdade, mas sua possibilidade precisamente, a possibilidade de algo como um ego qualquer, o meu ou o do outro. E esta possibilidade é a de um Si transcendental que tem sua ipseidade da Ipseidade da Vida absoluta – eis a definição cristã do homem como “Filho de Deus” e como “Filho no Filho”.
Mas, se o ego não é possível senão gerado na Ipseidade da Vida fenomenológica absoluta e no Si originário desta Ipseidade, então os próprios termos da relação com o outro e ao mesmo tempo esta própria relação se encontram alteradas. Enquanto for compreendido ingenuamente como repousando sobre si e bastando-se a si mesmo, o ego pode, com efeito, fornecer tanto o ponto de partida da relação com o outro quanto o termo desta: o próprio outro, o outro ego. Mas, uma vez que a possibilidade do ego aparece como um problema, uma vez que se dá a evidência de que nenhum ego jamais se trouxe a si mesmo à condição que é a sua e que esta impotência radical concerne tanto ao outro ego quanto ao meu, então é a incapacidade do ego para constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada da relação com o outro que se descobre de repente, e é o dado habitual da questão desta relação que naufraga. A relação entre os egos cede lugar à relação entre os Filhos. (Michel Henry, MHSV)