Homem Exterior Interior

VIDE: ESO ANTHROPOS; PALAIOS ANTHROPOS; GRÃO E PALHA; ESAÚ E JACÓ; ADÃO ALMA VIVENTE — ADÃO ESPÍRITO QUE VIVIFICA


Plotino: (ENÉADA I, I, 10)


Agostinho de Hipona: De Trinitate, XII, 1

Vejamos agora onde estão os limites, por assim o dizer, do homem exterior e do interior. Pois tudo o que temos na alma comum com o bruto, diz-se ainda com razão pertencer ao homem exterior. Pois não só se considerará homem exterior o corpo, mas também uma certa vida sua unida a ele, pela qual florescem o conjunto do corpo e os sentidos de que está provido para sentir as coisas exteriores. E quando ao lembrar, as imagens desses sentidos gravadas na memória tornam a ser vistas, trata-se ainda de uma coisa pertencente ao homem exterior. E em todas estas coisas não nos diferenciamos do bruto senão porque não estamos inclinados pela figura do corpo, mas erectos. Com o que nos adverte aquele que nos fez que não sejamos semelhantes pela parte melhor de nós, isto é, pela alma, aos brutos, dos quais nos distinguimos pela ereção do corpo: não aconteça que rebaixemos a alma ao mais elevado que há nos corpos. Pois apetecer o repouso da vontade em tais coisas, é humilhar a alma; porém assim como o corpo está erguido naturalmente em direção àquelas coisas que são mais altas entre os corpos, isto é, às celestes, do mesmo modo há que elevar a alma, que é uma substância espiritual, em direção às coisas que são mais altas entre as espirituais, não com a arrogância da soberba, mas com a piedade da justiça.

Mestre Eckhart: Vom edelen Menschen

Antes de tudo se deve saber, e também está revelado, que o homem tem em si duas classes de natureza: corpo e espírito. Por isto se escreveu: “Aquele que se conhece a si mesmo, conhece todas as criaturas; pois todas as criaturas são ou corpo ou espírito”. Por isso diz a Escritura acerca do homem — que há em nós um homem exterior e outro, o homem interior.

Pertence ao homem exterior tudo aquilo que está aderido à alma, porém está ligado e mesclado à carne e tem uma cooperação corporal com todos os membros, como acontece com o olho, o ouvido, a língua, a mão e outros semelhantes. E tudo isto a Escritura denomina o homem velho, o homem terreno, o homem exterior, o homem inimigo, um homem servil.

O outro homem que há em nós é o homem interior; a Escritura chama-o um homem novo, um homem celeste, um homem jovem, um amigo, um homem nobre. (…) O homem interior é Adão, o varão da alma. É esta a boa árvore, da qual disse nosso Senhor que dá sempre, sem cessar, bons frutos; é também o campo em que Deus plantou sua Imagem e Semelhança e no qual semeia a boa semente, a raiz de toda sabedoria, de toda arte, de toda virtude, de toda bondade; semente de natureza divina. A semente é o Filho de Deus, a palavra de Deus!


Roberto Pla: Evangelho de ToméLogion 89

Com respeito ao homem exterior, diz o apóstolo que se “desmorona”, e com isto aponta à erosão gradual e implacável que produz a lei natural, quer dizer, o tempo e a orientação fatal para a morte. Mas o homem exterior se desmorona, não só no corpo de carne mortal, senão também nas tendências psíquicas e em suas obras aderidas até o ponto de identificação com o corpo passível.

Quanto ao homem interior, não é outra coisa que o espírito puro, sem mescla, do qual diz o Apóstolo que se renova dia a dia, em um presente sempre novo e eterno. Embora o corpo passível e as inclinações morram — diz — por causa do pecado, o espírito é vida por causa da justiça (Rm 8,10).

Os dois homens interior e exterior, eterno um e temporal o outro, coexistentes no ser completo de cada homem durante o transcurso de sua vida terrestre, servem para explicar com um tom algo desmitificado a doutrina da dualidade do homem, uma doutrina que foi suscitada pela duas criações do homem segundo o relato do Gênesis (v. sobre este tema a notável exposição de Paul Nothomb).

Algumas escolas cristãs dos primeiros séculos se ocuparam em esclarecer que o homem “feito” na Plenitude (pleroma) pelo Deus (Elohim) de Gen 1,26-27, e o homem “formado” (plasmado) na Deficiência (Kenoma) por YHWH em Gen 2,7, se uniram em seguida em matrimônio antropológico. Ao primeiro destes, ao espírito, feito “à imagem”, lhe coube ser a “essência”, e ao segundo, à alma, formada “à semelhança”, a correspondeu revestir a essência, não só com seu corpo “celeste” próprio, senão também, depois, com a túnica de carne e pele, mortal e passível, na qual desde então “pré-morremos” todos os homens, nascidos, todos e cada um, como mistura de macho e fêmea ao mesmo tempo (Esposo e Esposa). O primeiro, enquanto espírito eleito, interior, e o segundo enquanto alma chamada a receber em seu Dia o espírito.

Das duas criações genesíacas entenderam muitos que para o nascimento do homem haviam colaborado dois criadores: Deus e o Demiurgo, perfeito o primeiro e imperfeito o segundo. Contra essa opinião bastante generalizada no paleo cristianismo e não isenta de antropomorfismo, advertem Paulo, Lucas e nosso logion.

Em realidade, dos dois homens coexistentes em cada homem como uma unidade de consciência não há mais que um, pois o outro “não é verdadeiro” se se estuda desde um puro sentido evangélico. O que não é verdadeiro não prevalecerá porque não possui vida eterna por si mesmo, senão que vive por empréstimo ocasional.

Com efeito, o homem exterior, o que não é verdadeiro, vive no mundo a merce de sua própria exigência dinâmica. Para ele há sempre uma morte prevista, uma morte ineludível que o aniquila quando as substâncias que compõem se desmoronam do todo. Não é necessário referir-se aqui à morte corporal, senão a outra muito mais sutil e específica do evangelho, quer dizer, à gloriosa “entrega” psíquica, à negação de si mesmo (Renuncia), a esse “decrescer”, a esse “minguar” que nomeava João Batista e que vem, passo a passo, quando a alma, purificada, consegue sumir-se “na humildade de ser escrava” (Miriam) do esposo sagrado, quando “dispersou sua soberba (de individualidade separada) em seu próprio coração” (Miriam).

Esta é a “obra” segundo a qual o homem exterior se transfere ao homem interior. Assim encontra nascimento o “homem em Cristo”. Tudo isto o explica o evangelho pois o nascimento do Espírito em todo homem é o objeto primordial de sua proclamação. O mistério desse nascimento significa que uma alma exerceu seu direito, conferido por Deus desde o princípio, “de fazer-se filho de Deus”.

Também significa um impulso dinâmico purificador na vida do homem. Na linguagem paulina, o dinamismo em direção ao espírito se significa pelas denominações “velho” e “novo” (palaios anthropos). O homem exterior passa a ser o homem velho “do qual há que despojar-se”, e o homem interior, glorificado, é o homem novo, o qual por ser espírito não se desmorona senão que se renova dia a dia, de instante em instante, “até alcançar um conhecimento perfeito” (Col 3,9-10).