Agostinho de Hipona — Sermões para a Páscoa
Excertos da tradução portuguesa da introdução de Suzanne Poque
O Dia da Paixão do Senhor
Baldadamente se busca na pregação agostiniana um texto para a Quinta-Feira Santa. É sabido que era costume não falar abertamente da eucaristia, e que se nos chegaram muitas catequeses eucarísticas não foram pregadas ad populum1. Lê-se na En. in Ps. 21, II, 28, a seguinte indicação: «Não se pode comentar agora o sacrificium pacis»; este «agora» (modo) pode ter duplo sentido: não é aqui o lugar (ad populum) ou: não é agora o dia (estamos em Quarta-Feira Santa). A Carta a Januário (Epist. 54, 6-10) informa que os fiéis da África tinham muito cuidado e diligência em comemorar a Ceia nas mesmas condições da instituição. Fundavam-se em Lc 22, 20 (postquam coenavit) para celebrar a sinaxe depois da refeição2. Mas não temos a pregação para este dia e o catálogo da biblioteca de Hipona também o não mencionava.
Porém, havia lá, segundo Possídio, duas pregações sobre a Paixão: Domini Passionis tractatus duo. No título dos S Guelf. 2 e 3 encontra-se esta mesma indicação. No mesmo grupo se há-de colocar o S 218. É de perguntar se esta celebração estava já separada na noite de Páscoa ou se eram comemoradas simultaneamente a morte a ressurreição do Senhor, como dois aspectos do mesmo mistério. Mas como na África no século IV havia o cuidado de comemorar a Ceia no seu momento histórico, como não cuidar que se celebrava também a Paixão no seu dia aniversário, quod nullus ambigií sexta sabbati (coisa que ninguém duvida, sexta-feira; Epist. 36, 30)? Realmente a Páscoa festejava-se não num dia só, mas no espaço de três dias: At tende igitur sacratissimum triduum crucifixi, sepulti, suscitati (dá atenção ao tríduo sacratíssimo do crucificado, do sepultado, do ressuscitado; Epist. 55, 24). Sexta-feira, pois, a sollemnitas requeria pregação sobre a Paixão do Senhor.
Em Hipona lia-se a Paixão segundo S. Mateus:
«Como só um dia se lê a Paixão, é costume só ler a de S. Mateus. Quis uma vez se lesse ano após ano a Paixão segundo todos os Evangelistas. Mas os assistentes, ouvindo textos a que não estavam habituados, ficaram desorientados» (S 232, 1). Depois de uma declaração destas, é a nossa vez de ficar não pouco desorientados ao ler o S 218, que segue passo e passo o texto do Evangelho de S. João. Teria este sido pronunciado no ano da experiência falhada? Outra hipótese. Terás S.to Agostinho escolhido o texto da Paixão segundo S. João no ano em que comentava o Evangelho e depois a epístola de S. João? É coisa que mal parece provável, por não haver neste sermão rastos de polêmica antidonatista. Propõe ele uma interpretação simbólica para catorze episódios da Paixão, confrontando-os com versículos de salmos ou com textos de S. Paulo. O S Guelf. 2 baseia-se em dois passos do Salmo XXI (17-19 e 28-29). Aqui está sempre em primeiro plano a polêmica antidonatista. Mas o trecho mais retumbante é incontestavelmente o 5 Guelf. 3. O tema propõe-se na primeira frase: «A Paixão de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo é uma promessa de glória e uma lição de paciência.» O versículo da Epístola aos Gaiatas 6, 14, ministra o elemento de contraponto levado com domínio e sobriedade.
O que nos três sermões se acentua é a alegria. A cruz só para os infiéis é escândalo3. Os cristãos têm nela motivo de orgulho e penhor de glória: titulum gloriae, fiducie gloriae (S Guelf. 3, 3). Mas aprender a sofrer é a grande lição da Paixão do Senhor: doctrina patientiae. Ensina-nos a humilitas, o sentimento, que nunca nós devíamos deixar, das nossas limitações e pequenez.
Minudências na narração da Paixão: a esponja é o símbolo dos corações inchados, non solidi sed tumidi (não sólidos, mas túmidos); o Senhor rendeu o espírito por humildade, per humilitatem, inclinando a cabeça4 (S 218, 11, 12). «Quem terá a ousadia de se elevar (superbire) quando quem com seu exemplo ensina a humildade é o próprio Deus?» (S Guelf. 3, 4).
NOTAS
Semelhantemente, nem a última ceia, nem o sacrifício eucarístico, nem a comunhão se representam diretamente nas pinturas das catacumbas, nas esculturas dos sarcófagos, na iconografia paleocristã. Cf. L. de Bruyne, «Initiation chrétienne et Art Parléo-chrétien», Rev. des Sciences Réligieuses, 1962, p. 67. ↩
O texto da carta 54 não é muito claro no que se refere a este ponto. Parece-me que deve entender-se assim: quinta-feira, por causa da cerimônia do batismo, os competentes iam ao banho, de que se tinham privado durante a Quaresma (ou só desde o domingo precedente?); os fiéis tinham por costume acompanhá-los. Jejum e banho julgavam-se incompatíveis; esse dia quebrava-se o jejum. Para os que quebravam o jejum celebrava-se uma sinaxe eucarística, de manhã. Os que jejuavam tomavam a refeição pelas três ou quatro horas, segundo o costume. Para eles, que tinham guardado o jejum (penitencial) celebrava-se a sinaxe, memorial da Ceia, na sua hora aniversária, de modo que a refeição precedente fizesse de alguma forma parte da celebração (postquam coenavit), com valor quase ritual, «solene», conforme o vocabulário de então. Se se trata do jejum penitencial e não do jejum eucarístico, fica explicada a distinção feita por Agostinho entre «os que jejuam» e «os que não jejuam». ↩
E para os maniqueus que se servem contra os cristãos da citação de Ad Gaiatas 3, 13: «Maledictus omnis qui pendei in ligno (Amaldiçoado todo aquele que pende do madeiro). Cf. De adis cum Felice II, 10. ↩
Baixar a cabeça era um dos ritos do exorcismo. ↩