Tradução Ephraim Ferreira Alves
I — RELATOS DE UM PEREGRINO RUSSO
Orai sem cessar. (1Ts 5,17)
1. A Rússia por volta de 1860
A figura luminosa do peregrino russo, caminhando serenamente pelas estradas do Império com o coração transbordando de amor por toda a criação, apresenta-se com um destaque fora do comum numa época atormentada. Já se amontoam nuvens negras no horizonte político e social, que as bombas dos atentados logo vão iluminar com sinistros clarões. A Guerra da Crimeia e suas vicissitudes (1854-55) infligiram sérios golpes ao prestígio da política exterior da Rússia e mostrou o despreparo do exército. O Czar Nicolau I não conseguiu erguer uma barreira contra a maré das ideias que vinham do estrangeiro, e a tocha do liberalismo vai passar dos militares (tentativa de golpe de Estado dos dezembristas em 1825) para a nova classe da intelligentsia. Esta logo se divide em duas frações antagônicas, os eslavófilos, preocupados em preservar as tradições e os costumes que, iluminados pela fé, contribuíram para a grandeza do país, e os ocidentalistas, impacientes em promover as ideias novas, acelerar o processo de reformas sociais para estabelecer uma sociedade igualitária. O socialismo moderado de Herzen se radicaliza sob a pressão de diversos movimentos anarquistas ou do terrorismo revolucionário. Só se fala de projetos de reformas do Czar Alexandre II, cujo decreto de emancipação dos servos é promulgado no dia 19 de fevereiro de 1861. Época espantosamente instável, portanto, em que todas as estruturas da sociedade, até então consideradas como que à prova dos desafios do tempo, são postas em questão, como o mostra Dostoievski cuja obra de ficção começa a tomar corpo. Apesar das terríveis acusações que lhe vai lançar Tolstoi, a Igreja parece despertar de uma letargia secular. Os Relatos de um Peregrino Russo são um dos testemunhos mais emocionantes desse despertar espiritual.
Os barulhos do mundo vêm morrer na atmosfera de intemporalidade em que parecem mergulhar esses Relatos. Estão sem dúvida ancorados em uma época determinada, mas refletem também uma Rússia eterna, penetrada de viva espontaneidade e simplicidade, e sensível à harmonia da criação. Vai desfilando diante de nosso olhar toda uma galeria de personagens já encontradas no romance russo: um sábio starets, ladrões condenados a trabalhos forçados, um capitão alcoólatra arrependido, um tabelião de província que se gaba de ser um espírito forte, um hoteleiro espalhafatoso, um padre de zona rural preocupado com suas ovelhas, uma família que dá hospitalidade aos peregrinos, em nome de Cristo. Descrevem-se os espaços infinitos do Império, os grupos sociais mais diversos, as personagens que se encontram, não para representar os aspectos exteriores da realidade, mas uma imagem interior, a imagem da alma. A pergunta que se põe a cada passo não é esta: Quem tu és?, mas sim esta: Qual é a tua relação com Jesus Cristo? Qual a tua experiência de oração, esta via real que leva a Ele? A unidade da obra vem da personalidade do peregrino, sempre disposto a ouvir um conselho, a compartilhar os frutos de uma procura que o deixa apaixonado, a procura do único necessário, desta oração que estabelece o espírito na comunhão com Deus e ao mesmo tempo com os irmãos. Aí se reconhece a permanência dos traços de um povo sempre disposto a se deixar comover pela presença do divino.
Cronologicamente, pode-se situar a ação desses relatos entre a Guerra da Crimeia e a abolição da servidão, ou seja, entre 1855 e 1861. Em 1860, uma freira do Mosteiro de Optyna, filha espiritual do starets Ambrósio, tinha em mãos o manuscrito que foi publicado a primeira vez em Kazan em 1865. A tradução francesa dos quatro primeiros relatos saiu em 1943, nos Cahiers du Rhône, pelas Edições de la Baconnière, sob o título Relatos ãe um peregrino russo (é a que utilizaremos) e saiu de novo em 1968 pela coleção “Le Livre de Vie” (Seuil, Paris). Os últimos relatos, sob o título O Peregrino Russo, Três relatos inéditos, foram incluídos na coleção “Spiritualité orientale”, publicada pela Abadia de Bellefontaine, em 1973. Seria uma obra autobiográfica, um romance espiritual ou um tratado de edificação? Mas, em primeiro lugar, quem é seu autor?