Michel Henry
ENCARNAÇÃO — O CORPO E A CARNE (MHE)
Um corpo inerte semelhante aos que se encontram no universo material — ou ainda os que se podem construir utilizando os processos materiais extraídos deste, organizando-os e combinando-os segundo as leis da física -, tal corpo não sente nem experimenta nada. Ele não se sente nem se experimenta a si mesmo, não se ama nem se deseja. Nem, menos ainda, sente ou experimenta, ama ou deseja nenhuma das coisas que o cercam. Segundo a observação profunda de Heidegger, a mesa não “toca” a parede contra a qual está colocada. O próprio de um corpo como o nosso, ao contrário, é que ele sente cada objeto próximo de si; percebe cada uma de suas qualidades, vê as cores, ouve os sons, inspira um odor, calcula com o pé a dureza de um chão, com a mão a suavidade de um tecido. E só sente tudo isso, as qualidades de todos esses objetos que compõem seu ambiente, só experimenta o mundo que o pressiona por todos dos lados, porque se experimenta antes de tudo a si mesmo, no esforço que faz para subir a ruela, na impressão de prazer em que se resume o frescor da água ou do vento.
Essa diferença entre os dois corpos que acabamos de distinguir — o nosso, que, por um lado, se experimenta a si mesmo ao mesmo tempo que sente o que o cerca e, por outro, um corpo inerte do universo, seja ele uma pedra no caminho ou as partículas microfísicas que se supõe a constituem —, nós a fixamos a partir de agora numa terminologia apropriada. Chamaremos carne ao primeiro, reservando o uso da palavra corpo para o segundo. Pois nossa carne não é senão isto que, experimentando-se, sofrendo-se, padecendo-se e suportando-se a si mesmo e, assim, desfrutando de si segundo impressões sempre renascentes, é, por essa mesma razão, [12] suscetível de sentir o corpo que lhe é exterior, de tocá-lo, bem como de ser tocado por ele — coisa de que o corpo exterior, o corpo inerte do universo material, é, por princípio, incapaz.
A elucidação da carne constituirá o primeiro tema de nossa investigação. Queremos falar dos seres encarnados que somos nós, os homens, desta condição singular que é a nossa. Mas esta condição, o fato de ser encarnado, nada mais é que a encarnação. Sucede, porém, que a encarnação não consiste em ter um corpo, em se propor desse modo como um “ser corporal” e, portanto, material, parte integrante do universo a que se confere o mesmo qualificativo. A encarnação consiste no fato de ter uma carne; mais, talvez: de ser carne. Seres encarnados não são, pois, corpos inertes que não sentem e não experimentam nada, sem consciência de si mesmos nem das coisas. Seres encarnados são seres padecentes, atravessados pelo desejo e pelo medo, e que sentem toda a série de impressões ligadas à carne porque estas são constitutivas de sua substância — uma substância impressionai, portanto, que começa e termina com o que experimenta.
Definida por tudo aquilo de que um corpo se acha desprovido, a carne não poderia confundir-se com ele; ela é antes, por assim dizer, o exato contrário. Carne e corpo opõem-se como o sentir e o não sentir — o que desfruta de si, por um lado; a matéria cega, opaca, inerte, por outro. Tão radical é essa diferença, que, por mais evidente que pareça, nos é muito difícil, e até impossível, pensá-la verdadeiramente. E isso porque ela se estabelece entre dois termos, um dos quais, afinal de contas, nos escapa. Se nos é fácil conhecer nossa carne porque ela não nos deixa nunca e se cola à nossa pele na forma dessas múltiplas impressões de dor e de prazer que nos afetam sem cessar de modo que cada um, com efeito, sabe muito bem, com um saber absoluto e ininterrupto, o que é sua carne — ainda que não seja capaz de exprimir conceptualmente esse saber -, totalmente diverso é nosso conhecimento dos corpos inertes da natureza material: ele vem perder-se e terminar numa ignorância completa.
Gregório do Sinai
137 sentenças diversas
9. Pois a origem da carne é a corrupção. Comer, evacuar, se enfeitar e dormir, se pavonear e dormir, é naturalmente o próprio das feras e das bestas. Tornados pela desobediência semelhantes às bestas, decaímos dos bens dados por Deus, e que nos eram próprios. De seres de razão, nos tornamos como bestas. De seres divinos, nos tornamos como feras.
Frithjof Schuon
O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Quem diz homem diz forma; o homem é a ponte entre a forma e a essência, ou entre a “carne” e o “espírito”.
A não ser que se pretenda que sejam cristãs, como se fez quanto às “Dissertações” de [wiki base=”pt”]Epicteto[/wiki], ou a não ser que se conceda à inteligência dita “natural” um papel honroso, como se fez quanto a Aristóteles; neste caso, a “carne” torna-se “natureza”, o que é melhor que nada, mas está sempre abaixo da verdade. Se há uma “sabedoria segundo a carne” é, certamente, e no mais alto grau, este pensamento especificamente moderno em que o irracional passa por supra-racional, matando o racional.
Aliás, para uma perspectiva voluntarista e penitencial, que vê o mal sobretudo na paixão da carne, é grande a tentação de ver a queda no ato sexual; na verdade, é impossível a causa da queda estar numa lei positiva da natureza; ela está unicamente no fato de afastar os bens naturais de sua Fonte divina, de vivê-los fora de Deus e de atribuir a si a sua glória e o seu usufruto.
Certamente, a carne foi amaldiçoada em virtude da perda da graça divina, mas apenas de um determinado ponto de vista, o da descontinuidade existencial e formal e não do ponto de vista da continuidade espiritual e essencial.
A castidade pode ter por finalidade não apenas resistir à influência da carne, mas também, de modo mais profundo, escapar da polaridade dos sexos e reintegrar a unidade do pontifex primordial, do homem como tal. Certamente, ela não é uma condição indispensável para esse resultado, mas é um sustentáculo claro e preciso, adaptado a determinados temperamentos e a determinadas imaginações.