Evágrio Prática 31-40

Evágrio — Tratado da Prática
PRAXIS ou PRAKTIKÉ ou PRÁTICA
Tradução de Antonio Carneiro acompanhada de notas do tradutor.

31 Notei que o demônio da vanglória é expulso por quase todos os demônios, e que, quando caem aqueles que o expulsam. se aproxima descaradamente, e expõe aos olhos do monge a grandeza de suas virtudes.

32 Aquele que atingiu a ciência, e que colheu o prazer que a procura, não se deixará mais se convencer pelo demônio da vanglória, que lhe propôs todos os prazeres do mundo. Com efeito, o que se poderia permitir que fosse maior que a contemplação espiritual ? Mas, tanto quanto não provamos da ciência, exerçamo-nos ardentemente à prática, mostrando à Deus que nosso objetivo é fazer tudo em vista da ciência.

33 Lembra-te de tua vida de outrora, e tuas antigas faltas, como eras sujeito às paixões, tu que, pela misericórdia do Cristo, chegastes à impassibilidade, como também ao mundo, do qual saístes, te havia infligido numerosas e frequentes humilhações. Reflita ainda sobre isso: quem é que te protege no deserto? Quem afasta os demônios que arreganham os dentes contra ti? Tais pensamentos, com efeito, engendram a humildade e fecham a porta ao demônio do orgulho.

34 Se temos uma coisa das lembranças passadas, é que recebemos anteriormente esses objetos com paixão, e, inversamente, todos os objetos que recebemos com paixão, teremos também lembranças apaixonadas.É porque aquele que venceu os demônios operando ativamente faz pouco caso do que é realizado por eles. Pois mais difícil que a guerra material é a imaterial.

35 As paixões da alma puxam o homem para suas origens, aquelas do corpo, do corpo. E as paixões do corpo são retiradas pela abstinência, as da alma pelo amor espiritual.

36 Aqueles que presidem às paixões da alma persistem até à morte, os que presidem àquelas do corpo se retiram mais rapidamente. Então, por outro lado, que os outros demônios, parecidos com o sol do levante ou do poente, não atingem senão uma parte da alma, o demônio do meio-dia *, ele, costuma envolver a alma toda inteira e abafar o intelecto. Também a anacorese ** é doce após a eliminação das paixões: então só se tem lembranças puras, e a luta não dispõe mais, a partir de agora, o monge ao combate, mas à contemplação dela mesma.

37 É a representação que provoca as paixões, ou as paixões que provocam a representação? Isto pede relexão. Alguns certamente são pela primeira opinião, alguns pela segunda.

38 É pelas sensações que as paixões são naturalmente provocadas; e se a caridade e a abstinência são apresentadas, elas não serão provocadas; mas, na ausência delas, elas serão. Ora a parte irascível tem necessidade de mais remédios que a concupiscência; é porque a caridade é considerada « grande », pois ela é o freio da parte irascível; é ela também que Moisés, esse grande santo, em seu tratado sobre a natureza, nomeou-a simbolicamente « ofiomaca »1

39 Ao mau odor que reina entre os demônios, a alma tem o costume de se inflamar contra os pensamentos, assim que percebe sua aproximação, por estar afetada pela paixão daquele que a atormenta.

40 Não é possível de se conformar em qualquer circunstância com a regra habitual, mas, é preciso consideração com as circunstâncias, e se esforçar em cumprir de sua melhor maneira os mandamentos então praticáveis. Essas circunstâncias, com efeito, não escapam também dos demônios. Também eles se enfraquecem contra nós para nos desviar daquilo que pode ser feito, e nos obriga à executar o que não pode ser feito. É assim que eles impedem os doentes de agradecerem pelos seus sofrimentos, e de suportar pacientemente aqueles que o servem; por outro lado, eles exortam, se bem que estejam enfraquecidos, à praticar a abstinência, e, todos pesados como estão, à salmodiar de pé.


NOTAS:

  1. .« ophiomaque » (fr.) vem de ophio — do grego antigo (ofis) « serpente » e — maque do grego antigo (makhê) « combate »: que combate serpentes, que destrói serpentes. Não foi encontrada palavra equivalente em português foi usada provisoriamente a palavra « ofiomaca ».[]