Adversários de Paulo
Excertos do Estudo de R. Kuntzmann e J.-D. Dubois sobre a Biblioteca de Nag Hammadi
Habitualmente, as relações do apóstolo Paulo com os meios gnósticos são examinadas por dupla perspectiva. Por um lado, Paulo combateu certos adversários, cuja caracterização como gnósticos é questionável. Por outro lado, a luta de Paulo contra seus adversários também nos permite perguntar até que ponto ele próprio não foi influenciado pelos gnósticos em sua terminologia e suas ideias. Essas duas questões, intrinsecamente ligadas, não são novas, não derivando propriamente da descoberta dos textos de Nag Hammadi.
Por comodidade não trataremos aqui a questão da definição dos limites exatos do corpus paulino. Apesar dos problemas de autenticidade propostos por esta ou aquela epístola, nos manteremos em perspectiva ampla, considerando o conjunto das epístolas autênticas e das tidas como deutero-paulinas.
A identidade dos adversários do apóstolo Paulo não é uma questão simplesmente para responder à curiosidade dos exegetas. A interpretação desta ou daquela epístola muitas vezes tem dependido da identidade dos adversários. Assim, não se deve tomar o conjunto do corpus paulino como resposta a uma frente única de adversários, uma espécie de heresia com diversas ramificações, espalhadas pelas diversas cidades atingidas pela pregação missionária de Paulo. Embora frequentemente se tenha feito distinção entre os adversários de Paulo de origem judaica e os gnósticos entusiastas, a tendência atual privilegia muito mais o estudo de cada epístola separadamente, a fim de identificar texto por texto as diversas questões propostas pela identidade dos adversários.
Nas duas epístolas aos coríntios, muitas vezes fez-se notar que os falsos doutores visados por Paulo baseavam-se em certa sabedoria (1Cor l,17ss; todo o capítulo 2; 3,1ss.18-20), qualificada por vezes como conhecimento (1Cor 1,5; 8,1-2; 2Cor 11,4-6), gnosis em grego, termo cuja presença não deve ser confundida com a gnose dos sistemas gnósticos do século II. Refutando as pretensões de seus adversários (1Cor 4,6ss; cf. 1Cor 4,8 e Evangelho de Tomé 2; 1Cor 8,3; 10,23ss), Paulo nega ser um dos que detêm os segredos do conhecimento: Paulo só conhece a sabedoria misteriosa de Deus (1Cor 2,7), manifestada na loucura da cruz.
Se a cruz se encontra no centro da teologia paulina (1Cor 1,18-25), isso ocorreu sem dúvida por causa da negação do Jesus terreno por seus adversários (1Cor 1,17; 12,3) e por causa da pregação de “um Jesus diferente” (2Cor 11,4; cf. Segundo Tratado Grande Set e Apocalipse de Pedro no Códice VII). Devido à negação do valor salvífico do corpo e do sangue de Cristo, Paulo reafirma o sentido da ceia do Senhor (1Cor 11,17ss) ou de sua ressurreição (1Cor 15,12). Contra os arrebatamentos dos entusiastas (1Cor 12-14; 7,40b; 15,46; 2Cor 11,4), Paulo reafirma a força do evangelho na fraqueza (1Cor 1,17; 4,10; 2Cor 3,4-5; 13,9). Lendo as duas epístolas, pode-se sentir que os entusiastas de Corinto tirem sua identidade de uma relação direta com Cristo (1Cor 1,12; 4,10; 2Cor 10,7; 11,23; 12,lss; 13,3) e talvez de uso particular das palavras do Senhor, citadas muito mais por Paulo nas epístolas aos Coríntios do que em outros escritos paulinos (1Cor 7,10; 9,14; 11,23; talvez 2,9, em comparação com o Evangelho de Tomé 17). Essa atitude, que tende a privilegiar a experiência espiritual presente contra uma espera da ressurreição futura (1Cor 15,12; 2Cor 5,1-10), provoca uma crítica da competência espiritual do apóstolo Paulo (2Cor 11,5; 12,lss) e o começo das divisões na comunidade (1Cor 1,12).
Os adversários visados pela epístola aos Filipenses parecem mais enraizados na prática da fé judaica (Fl 3,3-6, observância da Lei e da circuncisão), mas também na busca da perfeição (3,3; 3,12-16; cf. 2,3; 1Cor 2,6ss) e nas revelações particulares (3,15; cf. 2Cor 4,2; 5,llss). É possível que a referência ao “conhecimento” (Fl 3,8 e 10) seja polêmica. O conhecimento da fé em Cristo repousa na espera da ressurreição e na comunhão nos sofrimentos do Salvador (3,9-11). Como em 1Cor 15, o apóstolo Paulo lembra que a espera da salvação (Fl 3,20-21) passa pelo exemplo da cruz de Cristo e por conduta perfeita (3,19).
O conflito de Paulo com os “falsos irmãos” da comunidade gálata dá testemunho de combate ainda mais duro contra os missionários judaizantes, que impõem a exigência da circuncisão, inclusive aos novos cristãos de origem gentílica. Eles desprezam os instrutores (Gl 6,6) e os apóstolos (1,1.10-11), em nome de seus dons espirituais (3,2.5; 5,25; 6,1) e de suas crenças nas forças que regem a vida terrena (4,39 e 4,9; Cl 2,8.20).
A espera escatológica na comunidade tessalonicense produziu a tendência a crer que “o Dia do Senhor já estava próximo” (2Ts 2,2; cf. também Cl 1,13). Ela também pode ser encontrada em outras epístolas do Novo Testamento (2Tm 2,18; 1Cor 4,8; Fl 3,12), particularmente como fundo das exortações do Apóstolo em 1Ts 5,1ss. Talvez seja por isso que Paulo encoraja seus destinatários à vigília e a abandonar o sono (1Ts 5,7-11; cf. Evangelho da Verdade 17,10ss).
As conclusões da epístola aos Romanos (16,17-20) lembram as exortações das outras epístolas (1Cor 1,17ss; 2Cor 10,10; 11,13-15; Fl 3,17-18; Gl 5,19ss; 1Tm 1,6; 6,20). Podemos até nos perguntar se elas não evocam situação comparável à das epístolas mais tardias no Novo Testamento, como as epístolas a Timóteo.
Dentre as epístolas paulinas ou atribuídas a Paulo, são as epístolas aos Colossenses, aos Efésios e a Timóteo que apresentam mais elementos comparáveis aos meios gnósticos. Os destinatários colossenses valorizam os tesouros da sabedoria e do conhecimento (2,4.23). Também acreditam nos “elementos do mundo” e em filosofias enganosas (2,8.20), no culto aos anjos (2,18) bem como nas revelações por visões (2,18b). É por isso que o Apóstolo responde às suas preocupações cosmológicas (1,15-20). Da mesma forma que em Gl 4,8ss, o Apóstolo combate os “preceitos e ensinamentos dos homens” (Cl 2,22) sobre as Soberanias, as Autoridades e os Poderes angélicos (1,16; 2,10.15) e sobre a ética da pureza enaltecida (Cl 2,16-21).
A epístola aos Efésios apresenta a salvação como “unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus” (Ef 4,13), como se fosse necessária uma correção ao “conhecimento” (1,8.17; 3,10; 5,17) daqueles que distinguem Cristo do Jesus terreno (Ef 4,20-21; cf. Ireneu de Lião, Contra as Heresias, I, 26,1). A insistência da epístola em salientar a unidade da Igreja fundada nos apóstolos e profetas (2,20; 3,5; 4,11) indica uma polêmica contra o entusiasmo carismático. É sem dúvida contra as especulações sobre as autoridades e os demônios que a epístola reafirma o plano divino de salvação, que submete todas as forças à autoridade de Cristo, sentado à direita do Pai (1,20; 2,2; 6,12).
À medida que combatem falsas doutrinas (1Tm 1,3.6; 4,1; 2Tm 2,16ss; 3,5-7), as epístolas pastorais a Timóteo e a Tito forneceram numerosos chavões para caricaturizar os gnósticos antigos. Em seu título, o tratado de Ireneu de Lião Contra as Heresias abriga uma referência a 1Tm 6,20: “… refutação da falsa ciência”. Sem utilizar a perspectiva heresiológica de Ireneu para interpretar as epístolas pastorais, pode-se pensar que os adversários de que tratam essas epístolas provêm do exterior da comunidade paulina (2Tm 3,6.13). Eles se apoiam na exegese da Lei judaica (1Tm 1,7-10) e em desdobramentos midráxicos qualificados de fábulas e genealogias (1Tm 1,4; 4,7; 2Tm 4,4; Tt l,10ss; 3,9; isso poderia lembrar as séries de gestações no Pleroma (cf. Ireneu, Contra as Heresias, I, 1,1)), talvez consignados em uma coletânea de “antíteses” (tradução literal do termo empregado em 1Tm 6,20) entre a Lei do Antigo Testamento e as palavras do Salvador (cf. Ptolomeu, Epístola a Flora). Os falsos doutores falam em “conhecimento” (1Tm 6,20; lt 1,16) e espiritualizam a ressurreição, pretendendo que ela já ocorreu (2Tm 2,18; cf. 1Cor 15,12 e Ireneu, Contra as Heresias, I, 23,5; II, 31,2). Eles reservam a salvação somente para os espirituais (1Tm 2,6; 4,10; Tt 2,11) e desprezam a ordem da criação (1Tm 4,3-5).
Encerrando este panorama sobre os adversários do apóstolo Paulo e das comunidades paulinas, é difícil agrupar todas as características desses grupos sob a expressão única “gnóstico” e imaginá-los como realidade histórica análoga aos movimentos conhecidos do século II. Entretanto, o número de referências a uma terminologia característica dos textos gnósticos, a posições teológicas adotadas pelos gnósticos posteriores e a desvios salientados pelos Padres da Igreja, impõe aos pesquisadores que não oponham, como fizeram no passado, os adversários judaizantes de Paulo a eventuais adversários gnósticos. As correntes carismáticas, situadas sobretudo no seio das comunidades cristãs, podendo manifestar certos traços análogos aos gnósticos do século II, tiraram o essencial de seus argumentos da Escritura judaica e de seus métodos de interpretação. Atualmente, não basta demonstrar o caráter profundamente judaico de certos adversários paulinos para afirmar que eles não pertencem aos círculos gnósticos. Empregando-se com prudência o termo “gnose” a respeito da época de Paulo, também deve-se entender que o ardor das controvérsias levou o pensamento paulino a reagir no próprio terreno de seus adversários.