Karol Wojtyla — A fé segundo São João da Cruz
3. O QUE É A UNIÃO DA ALMA COM DEUS (SUBIDA II 5).
De ponta a ponta, a obra de São João da Cruz trata primordialmente da união da alma com Deus: que é, quais são seus meios próprios, como e por que vias se consegue esta união, qual é sua forma definitiva. Em torno destes pontos se desenvolve materialmente sua tetralogia. E percebe-se com clareza desde o prólogo de Subida até a última página de Chama.
Pois bem, se a fé está subordinada à união , como o meio ao fim, podemos ver quão importante é para nosso intento fixar a idéia de união com a maior precisão possível, pois sabemos que os meios devem ser proporcionais aos fins que pretendem alcançar. Por sua ordenação intrínseca ao fim, é obvio que a índole específica da fé aparecerá mais claramente através da noção de união.
São João da Cruz distingue em Subida II 5,3 duas espécies de união da alma com Deus: uma natural, que chama também substancial ou essencial; outra sobrenatural, e esta é, propriamente falando, a ‘união de semelhança’.
A primeira consiste na presença substancial de Deus em qualquer alma, inclusive na do maior pecador:
“Deus, mora em qualquer alma e a assiste substancialmente, ainda que seja a do maior pecador do mundo”.
Esta primeira união, que consiste no fato mesmo da presença substancial de Deus na alma, resulta da comunhão no ser natural, e está, portanto, vinculada à criação e conservação:
“Deus está sempre na alma dando-lhe e conservando-lhe o ser natural com sua assistência”.
Porem não é esta a união que São João da Cruz quer explicar em suas obras. Ele se ocupa com a segunda, ou seja, a união sobrenatural. Por isso, depois da necessária e passageira alusão à união natural, esboça, com esplêndida visão de conjunto, o que é e como deve ser entendida a união sobrenatural.
O elemento primordial para distinguir estritamente a união sobrenatural de qualquer união natural é a diferente espécie de comunicação; não se trata já de uma comunicação no ser natural, mas de uma comunicação sobrenatural:
“embora seja verdade que […] Deus está sempre na alma dando a ela e conservando-lhe o ser natural com sua assistência, contudo, não lhe comunica sempre o ser sobrenatural”.
Este segundo tipo de comunicação se realiza mediante a graça e a caridade (mediante o amor):
“porque este não se comunica senão por amor e graça, na qual nem todas as almas estão”.
Mais ainda: esta comunicação sobrenatural se verifica em almas distintas segundo diferentes graus, que correspondem à diferença de intensidade da graça e do amor.
Mais abaixo se verá melhor a importância própria do amor para a realização da união. No momento basta assinalar que o Doutor Místico insiste, no texto que estamos analisando, no papel decisivo do amor para conseguir e aumentar a união. Assim resulta também assinalada a índole dinâmica da união de que trata: a união consiste na comunicação sobrenatural do ser de Deus mediante a graça e o amor. E o amor torna possível seu crescimento.
Esta união sobrenatural através da comunicação da graça e do amor é designada pelo Doutor Místico como uma ‘nova geração’, como um ‘nascimento’ dos filhos de Deus. São João da Cruz aplica aqui as passagens típicas de Jo 1, 13 e 2, 15. Sem dúvida, nos damos conta imediatamente que nesta breve panorâmica da união já se escuta uma nota verbal de máximo valor na teologia sanjoanista da graça e do amor: a transformação. Sua característica peculiar é um efeito do amor, que é o que produz a união sobrenatural, como veremos mais detidamente analisando Subida I 4: o amor é o que produz o aumento da união, e é também o que torna possível os diferentes graus de transformação. Pelo amor, ademais, a função unitiva e transformadora redunda na vontade. A seguir, São João da Cruz recorrerá a uma espécie de axioma, com o qual topamos em Subida II 5 e logo em muitas passagens mais:
“Deus se comunica mais àquela alma que está mais adiantada no amor, isto é, àquela que tem sua vontade mais conforme à vontade de Deus. E a que a tem totalmente conforme e semelhante, está totalmente unida e transformada em Deus sobrenaturalmente”.
Deste modo vemos que, por intervenção do amor, a união psicológica se reduz à conformidade da vontade humana com a vontade divina.
Acrescentamos ainda que esta conformidade é considerada de um ponto de vista objetivo, e assim, São João da Cruz repetirá insistentemente:
“a união sobrenatural se dá quando as duas vontades — a saber, a da alma e a de Deus — estão de tal modo conformes, não havendo em uma nada que contrarie a outra”.
Portanto, esta união é uma comunicação que consiste na conformidade de vontades, progride pelo amor e pelo amor expressa seu aspecto psicológico. Tal amor possui, simultaneamente, capacidade transformadora.
Que entenderemos por “transformação”? São João da Cruz afasta imediatamente a possibilidade de uma interpretação panteísta: não se trata de uma transformação substancial ou essencial, mas de uma transformação participada. O poeta São João da Cruz nos esclarece seu pensamento primeiramente com uma imagem brilhante: a do vidro investido pelos raios do sol, analogia famosa e muito conhecida. Observa o Doutor Místico que se os raios solares encontram um vidro limpo e transparente, tanto melhor lhe comunicará sua claridade, seu influxo luminoso, suas qualidades específicas; e se o vidro estiver absolutamente puro, absolutamente transparente, então o sol se comunicará com ele em tal grau que o fará ‘transluminoso’, brilhante com a mesma luz que brilha o sol, de forma que o confundiríamos com ele, embora não se tenha transformado essencialmente no sol, uma vez que não perdeu sua natureza de vidro, evidentemente distinta da natureza do sol. O que ocorre é que está participando em altíssimo grau da claridade solar: “embora se pareça com o raio, tem sua natureza distinta do mesmo raio; mas podemos dizer que aquele vidro é raio ou luz por participação”.
Eis aqui, através de uma esplêndida analogia, toda a teologia da comunicação sobrenatural pela graça e amor e da transformação participada. De maneira análoga, pois, a alma participa da comunicação sobrenatural pela graça e pelo amor e, em virtude deles acaba por transformar-se, por participação, na mesma luz de Divindade.
“A alma […] logo fica esclarecida e transformada em Deus, e Deus lhe comunica seu ser sobrenatural, de tal maneira que parece o mesmo Deus e tem o que o mesmo Deus tem. E esta união se realiza quando Deus faz à alma esta sobrenatural mercê, pela qual todas as coisas de Deus e da alma são unificadas por transformação participante; e a alma mais parece Deus que alma, e ainda é Deus por participação. Embora seja verdade que conserve seu ser naturalmente tão distinto de Deus quanto antes, ainda assim está transformada”.
Portanto, a transformação mais profunda não ultrapassa nunca os limites da participação. E, posto isto, já pode o Doutor Místico afirmar da alma: “é Deus por participação”.
Todas estas explicações põem em relevo, unicamente, como as realidades sobrenaturais, que na teologia teórica são expostas a nível de pura especulação, são expressas de maneira muito mais plástica e viva no mundo e na linguagem da experiência mística.
Vemos que o Doutor Místico apresenta a união como o fim de todos os desejos da alma, como uma participação sobrenatural com Deus, como uma participação da Divindade por graça e amor. E que a força inata desta é capaz de crescer até a transformação, isto é, até a união transformadora com Deus.
No amor também se inclui o aspecto especificamente psicológico: a conformidade da vontade humana com a vontade divina, que é conformidade objetiva: “não havendo em uma , nada que contrarie a outra”. Daí deriva a conformidade ou união moral: o mesmo querer, o mesmo não querer.
Os grandes fundamentos que sustêm o edifício sistemático da doutrina do Doutor Místico sobre a união podem ser condensados em três palavras:
Comunicação — participação — transformação.
A participação corresponde à comunicação, explica sua íntima natureza e dá sua medida, e, ao mesmo tempo, tende à transformação, dentro dos limites da participação, em forma de amor e por sua força. Isto é, à transformação participada de amor.
A doutrina de São João da Cruz sobre a união se encontra em germe nesta passagem de Subida II 5; logo, ao longo de toda sua obra, o germe irá se desenvolvendo e frutificando.
Para nosso intento, ou seja, para indagar seu pensamento sobre a natureza da fé, este capítulo é fundamental. Nele podemos, ademais, verificar a interpretação que fizemos acima de Subida II 8: a distinção do natural e do sobrenatural ali exposta corresponde aqui à doutrina do Doutor Místico sobre a dupla união da alma com Deus: união natural, união sobrenatural.
Pela primeira, qualquer criatura se ‘comunica’ com Deus pela razão de ser, e, pela maior ou menor perfeição de ser, toda criatura constitui um vestígio de Deus. Sem dúvida, o ser natural, por maior vestígio ou pegada de Deus que seja, por muita perfeição entitativa que tenha, não é capaz em absoluto de chegar por si mesmo à união sobrenatural com Deus, não pode ultrapassar seus próprios limites e adentrar no âmbito da essência divina, nem penetrar na intimidade vital da Divindade. Nenhuma perfeição natural é suficiente para tão subida união, já que a todas e a cada uma das criaturas falta a “semelhança essencial” que é condição requerida para remontar-se à ordem da Divindade.
Ao contrário, a fé possui essa “semelhança essencial”. Portanto, é apta para levar à união. O que eqüivale a dizer que a fé ultrapassa a fronteira da ordem sobrenatural e penetra a Divindade mesma, cooperando, de certa forma, ativamente na transformação participada da alma, que se realiza sucessiva e gradualmente por obra da graça e do amor. Tal capacidade se enraíza em si mesma de onde brota sua função unitiva.
Tudo isto, embora não de maneira expressa, se percebe muito claramente nos textos sanjoanistas analisados.