Underhill Boehme

EVELYN UNDERHILL — CONFISSÕES DE JACOB BOEHME

Tradução da Sociedade das Ciências Antigas

Introdução

I

JACOB BOEHME, que nos revela aqui alguns dos segredos de sua vida interior, foi um dos mais originais dentre os grandes místicos Cristãos. Possuidor de um gênio natural para tudo que se refere ao espírito, Boehme também apresenta muita das características de uma mente visionária; sua influência na filosofia tem sido, no mínimo tão grande quanto sua influência no misticismo religioso.

Nenhum místico nasce formado. Boehme foi, como os outros homens, o produto tanto da educação como da natureza. A Tradição e o ambiente condicionaram sua visão e forma de pensar. Sua difícil e, porque não dizer, peculiar doutrina é mais bem compreendida quando se lança um olhar sobre sua vida exterior e as influências recebidas. Nasceu numa família de camponeses em 1575, em uma vila perto de Görlitz, nos arredores da Saxônia e da Silesia; quando menino era lavrador. De uma disposição meditativa, sonhadora e piedosa, mesmo na infância já tinha experiências visionárias. Como não era forte o suficiente para o trabalho no campo, passou a ser aprendiz de sapateiro; contudo, suas rígidas ideias morais provocaram discussões com um outro trabalhador, Boehme foi dispensado e se tornou um sapateiro ambulante. Durante seu exílio forçado, que coincidiu com o mais impressionável período da juventude, aprendeu algo sobre a insatisfatória condição religiosa de seu tempo: as amargas discussões e a intolerância mútua que dividiam a Alemanha protestante e o formalismo vazio que se passava por Cristianismo. Entrou em contato com especulações teosóficas e herméticas que colocavam o pensamento alemão contemporâneo em destaque, e que para muitos parecia oferecer um escape para regiões mais espiritualizadas do que as encontradas nas ilusões das instituições religiosas. Ele próprio encontrava-se cheio de dúvidas e de conflitos internos. Torturado não só pela ânsia de uma certeza espiritual, mas também pelos impulsos desordenados e desejos passionais da adolescência — aquela “poderosa contrariedade” da qual ele tanto comenta — era frequentemente sentida pelo místico em sua forma mais exagerada. Suas necessidades religiosas eram simples: “Nunca desejei saber nada sobre a Divina Majestade… busquei apenas o coração de Jesus Cristo, para que pudesse me ocultar ali da terrível cólera de Deus e dos violentos assaltos do Demônio”. Do mesmo modo que Santo Agostinho em seu estudo sobre os Platônicos, Boehme buscava “um lugar que não fosse apenas uma visão, mas um lar”; com isso ele já demonstrou ser um verdadeiro místico. Sua ânsia e esforços para alcançar a luz foram recompensados, do mesmo modo como geralmente acontece com os buscadores no começo de suas investigações, por uma intuição da realidade, aliviando por um tempo a desarmonia que o atormentava. O Conflito cedeu lugar a um novo sentido de estabilidade e a uma “paz abençoada”. Isso durou por sete dias, durante os quais se sentiu “cercado pela Luz Divina”: uma experiência paralela às vividas por muitos outros contemplativos.

Aos dezenove anos, Boehme retorna á Görlitz, onde casa com a filha de um açougueiro. Em 1599 torna-se um sapateiro mestre e se estabelece neste ofício. No ano seguinte, ocorre sua primeira grande iluminação. As características de tal evento foram peculiares, indicando sua diferenciada constituição psíquica. Tendo passado recentemente por um novo período de entusiasmo e depressão, ele olhava fixamente e com grande concentração para um prato de cobre que captaram e refletiram os raios do sol. Tal fato, sem que nenhum psicólogo pudesse compreender, o trouxe a um estado de extrema sensibilidade; a faculdade mística tomou posse do campo mental, num ato abrupto. Foi como se tivesse uma visão interna do verdadeiro caráter e significado de todas as coisas criadas. Mantendo esse estado de lucidez, tão maravilhoso em seu sentido de renovação, a ponto de o comparar com a ressurreição dos mortos, ele saiu para o campo. Como uma raposa, possuído pela mesma consciência extática, descobriu que “toda criação exalava um outro perfume, muito além do que as palavras ousariam dizer”. Boehme penetrava o coração das ervas e das plantas, e percebia toda a natureza inflamada pela luz interna do Divino.

Foi uma intuição pura, que excedeu seus poderes de falar e pensar: mas ele meditou sobre isso secretamente, “trabalhando no mistério, como uma criança que vai à escola”, e sentiu seu significado “desabrochando em seu interior” e gradualmente desabrochou como “uma jovem planta”. A luz interior não era constante; sua desregrada natureza inferior persistiu e frequentemente impediu que rompesse com a mente exterior. Este estado de desequilíbrio psíquico e conflitos morais, durante os quais leu e meditou profundamente, durou cerca de doze anos. Por fim, em 1610, uma outra experiência colocaria um fim em tudo isso, coordenando todas as suas intuições dispersas em uma grande visão da realidade. Boehme sentiu-se impulsionado a escrever alguns relatos do que havia visto, dando início, nas horas vagas, a seu primeiro livro: Aurora. O título desta obra, que ele descreve como “A Raiz ou Mãe da Filosofia, Astrologia e Teologia”, mostra até que ponto havia absorvido as noções teosóficas de sua época; mas, seu relato vivo — um dos mais notáveis manuscritos involuntários ou inspirados que existe — mostra também como sua mente superficial pouco participara na composição deste livro, que ele “produziu diligentemente no impulso de Deus”.

Boehme, tal qual os antigos profetas e muitos visionários menores, estava possuído por um espírito, quer seja considerado por nós como um poder externo ou uma face de sua própria natureza complexa, dissociado do controle de sua vontade; ele “vinha e ia como uma ducha repentina”. Derramava-se em correntes de estranha e potente eloquência, intocável pela ação crítica do intelecto. Afirmou que durante os anos em que as visões estiveram lúcidas em seu interior “revisou atentamente muitas obras primas da literatura”. Com certeza, isso incluía as obras de Valentine Weigel e seus discípulos, e outros livros herméticos e teosóficos; o fruto destes estudos meio que compreendidos está manifestado no simbolismo astrológico e alquímico que tanto aumenta a obscuridade de seu estilo. Como muito visionários, era extremamente sensível ao poder evocativo das palavras, usando-as frequentemente, tanto por suas qualidades sugestivas, quanto pelo seu significado. Conta-se que ao ouvir pela primeira vez a palavra grega “Idea”, ficou extasiado e exclamou: “Vejo uma donzela pura e celestial”. É a esta faculdade que devemos, certamente atribuir seu amor aos símbolos alquímicos e aos jargões mágicos de sua época.

Uma cópia do manuscrito do livro “Aurora Nascente” caiu nas mãos de Gregorius Richter, o Pastor Primaz de Görlitz. Boehme foi violentamente atacado por suas opiniões não ortodoxas, sendo ameaçado de exílio imediato. Teve finalmente permissão para permanecer na cidade, mas fora proibido de escrever. Obedeceu a tal decreto por cinco anos, período considerado por ele como sendo de luta e melancolia, durante o qual foi torturado entre o respeito pela autoridade e a imperativa necessidade de auto-expressão. Suas opiniões, contudo, tornaram-se conhecidas. Elas lhe trouxeram muita perseguição: — “vergonha, infâmia e reprovação”, diz ele, “que ao meu redor nasciam e cresciam, todos os dias” — mas também fizeram com que ganhasse muitos amigos e admiradores da classe mais culta, especialmente entre os estudantes locais da filosofia hermética e do misticismo. Foi sob a influência deles que Boehme — com seu vocabulário agora muito mais enriquecido e com suas ideias bem mais esclarecidas como resultado de numerosos intercâmbio de experiências — começa a escrever novamente, em 1619. Em cinco anos entre esta data e sua morte, escreveu suas principais obras. A magnitude, obscuridades e repetições de seus escritos testemunham a fúria com que o espírito direciona a mão do escritor”. Algumas destas obras, contudo, parecem terem sido, de fato, escritas com consciência, esclarecendo pontos especiais de dificuldades; as primeiras intuições confusas e ocultas de Boehme acerca da realidade aos poucos deram lugar a uma visão mais lúcida. A “Aurora Nascente” tornou-se um “lindo dia brilhante”, no qual seu vigoroso intelecto fora capaz de lidar com o que havia visto “oculto e envolvido nas profundezas da Divindade”. Assim, as “Quarenta Questões” fornece respostas às questões levantadas pelo erudito Dr. Walther, diretor do laboratório químico de Dresden. Sua fama já se espalhava por toda a Alemanha; eminentes sábios vinham até sua sapataria para aprender com ele. Em 1622 abandonou sua profissão para se devotar inteiramente a escrever e expor suas ideias.

A publicação do belo “Caminho para Cristo”, impresso de forma privada por um de seus admiradores em 1623, causou novo ataque por parte de seu velho inimigo Richter. Pela primeira vez, Boehme cede à controvérsia, replicando com dignidade às violentas acusações de blasfêmia; a heresia recaiu sobre ele. Boehme foi convencido pelos magistrados a deixar a cidade, onde já contava com um grande número de discípulos. Dirigiu-se primeiramente a corte eleitoral de Dresden; encontrou ali os chefes teológicos da época, que ficaram profundamente impressionados com seu esclarecimento profético e piedade intensa, e recusaram a acusação de heresia. Em agosto de 1624, a morte de Richter permitiu que ele voltasse a Göerlitz, mas já estava muito doente, morrendo em 21 de Novembro do mesmo ano, aos 49 anos.