GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A “THEOLOGIA DEUTSCH”
NATUREZA
Em contraposição ao Uno, a Natureza se define como exteriorização, multiplicidade e individualização: a criatura é “aseidade”, objeto, coisa separada; mas não porque seja realidade ao lado de Deus, ser diante do Ser. Fora de Deus não há nenhum ser verdadeiro. Se bem que o francfortês não chega nunca à declaração radical de Eckhart sobre a absoluta nulidade da criatura, afirma decididamente que é apenas “acidente” e não tem ser senão em Deus. Ainda que a unidade e a unicidade do Ser se afirmem sem equívocos,a Natureza aparece com frequência não só como exteriorização necessária do Uno e momento necessário da Vida divina, mas também como uma incompreensível e irracional dejeção que ressurge para turvar a divina harmonia do Universo e que não deveria ser. O dualismo que se deriva daqui, sem ser metafísico, é um dramático dualismo funcional que torna possível o ritmo da vida moral. Se a criatura, mesmo sendo em Deus, não fosse naturalidade e, como naturalidade, não estivesse possuída de um cego impulso que busca com preferência o seu e só o que lhe traz benefício, se não fosse capaz de separar-se do Ser e de submeter-se à sua ilusória individualidade, tornando-se assim vítima da falsidade e do engano, a vida espiritual seria impossível e insignificante. A alma vive em Deus tão somente quando supera o mal e a natureza, e o mal é o amor a si mesma, a vontade pessoal. O pecado original, o pecado de Lúcifer, de Adão e de todas as criaturas, consiste no “atribuir-se” algum bem, como a vida, a existência, o conhecimento: é um querer-se a si mesmo, um opor-se à Vontade do Absoluto.
O mal se oculta, portanto, unicamente na alma, porque só ela pode submeter a si mesma; mas também só nela vive o bem. A alma pode olhar para o tempo e para a Eternidade; para as criaturas e para o Ser incriado; pode transcender os limites de sua individualidade e encontrarem si mesma a presença do Bem que estava nela oculto e era desconhecido. O bem e o mal são os dois aspectos de uma polaridade espiritual dentro da qual se desenvolve toda a vidada alma em sua perene oscilação entre o Infinito e o finito, entre o abrir-se à ação do Transcendente que atua desde o profundo e o recolher-se com orgulho dentro do estreito círculo do próprio eu. A vida moral é um heroico esquecimento de tudo o que nos liga à posse; é elevação para uma universalidade cada vez mais ampla e compreensiva, um abrir-se a uma Verdade e a um Bem que não é nosso, mas que se revela em nós. Muitos pensam que é necessário esvaziar-se de tudo, da vontade, do desejo e do saber, sem amor e sem conhecimento. Mas este esvaziamento não se deve interpretar no sentido de que todo o conhecimento se acabe no homem, porque então tampouco Deus seria conhecido e amado. O homem se converteria assim em um animal sem raciocínio. Deve-se interpretar ao contrário, no sentido de que o conhecimento se torne tão puro e perfeito que se possa reconhecer que nele não atua o homem senão o Conhecimento eterno, o Verbo eterno. Quanto menos a criatura se atribui o saber, tanto mais perfeito este se torna, e o mesmo pode-se dizer da vontade, do amor e do desejo, pois, tão logo a ignorância e a ilusão se transformam em conhecimento e em saber,desaparece a atribuição de qualidade. O processo cognitivo é, como para Spinoza, catarse moral e liberação das ilusões cotidianas e impuras. Dada a imanência do Divino, a tarefa da alma não consiste em um fazer que pretenda construir uma verdade própria, senão em um fazer que prepara a alma para receber passivamente a luz da Verdade e do Bem. Quando o homem renuncia à sua propriedade e sai de si, entra Deus com sua propriedade e sua beatitude. A atividade da alma é mais um não-atuar que pressupõe renúncias e dores e exige conhecimento e distinção racional. Somente Deus atua em nós, refletindo-se em um coração que antes tenha sido polido e purificado.