Teologia Germânica Deus

GIUSEPPE FAGGIN — MEISTER ECKHART E A MÍSTICA MEDIEVAL ALEMÃ
A “THEOLOGIA DEUTSCH”
Deus
A pequena obra começa com o grundmotiv eckhartiano, opondo o Criador à criatura, o Perfeito ao imperfeito; o Uno indivisível ao fragmentário. Deus é o Ser único que compreende em si todos os seres: fora dele não há verdadeiro ser, nele todas as coisas têm seu ser. Deus é a essência de todas as coisas e, mesmo sendo imóvel e imutável, move e muda todas as outras coisas. O fragmentário, ao invés, é o que emana do Perfeito, como o esplendor que amana do sol e se apresenta como coisa determinada, como isto e aquilo. De todas estas coisas particulares nenhuma é o Perfeito e o Perfeito não é nenhuma destas coisas particulares. Os objetos separados se podem conhecer e expressar; o Perfeito, ao contrário, é incognoscível e inexpressável. Portanto, ao Perfeito se chama ” o Nada”, pois não havendo nada igual a ele, a criatura, como tal, não pode dar-lhe um nome nem conhecê-lo. Poderíamos dizer que o Uno é o Bem, pois o Bem é uma primeira forma de sua manifestação; mas devemos entendê-lo não como um bem determinado, que se pode de um modo ou dê outro imaginar ou denominar, senão como um bem que a todos supera. O Uno é absolutamente livre de todas as coisas e não possui quidditas, ou “aseidade”, enquanto que à criatura e a tudo que chamamos “natureza” corresponde buscar a si mesma em tudo e encontrar no que faz uma utilidade e um benefício. Deus é também Luz e Conhecimento, Vontade e Amor, Justiça e Verdade; é, em suma, todos os valores. Porém tudo isto em Deus não é mais que um puro ser e um puro emanar, mas não um atuar, visto que o atuar, quer dizer, o realizar-se e o traduzir-se em ato, não se produz mais que nas criaturas, Deus está, sem dúvida, muito acima e carece de toda determinação, medida e ordem, mas dá a determinação, a medida e a ordem a todas as coisas. De fato, Deus quer ter todas estas coisas e é impossível que as tenha para si sem a criatura. Já que sem a criatura não há em Deus nem ordem nem desordem, nem determinação nem indeterminação; se Deus quer que sejam nele, convém que sejam nas criaturas; mas a razão e a ordem são melhores e mais nobres que seus opostos e Deus,portanto, os quer e os realiza nas coisas. A Vontade eterna que em Deus é princípio fontanal e essencial sem trabalho e sem realidade, só no homem e na criatura trabalha e realiza. Deus quer que a criatura exista para que sua vontade — que é e permanece nele sem agir — possa agir na criatura e por ela realizar-se, pois seria inútil uma vontade que quisesse e não agisse. Por conseguinte, a vontade da criatura, a que se chama “vontade criada”, é também de Deus — como a Vontade eterna — e não propriedade da criatura. O mundo dos espíritos operantes é uma prolongação necessária da Vontade e do ser divino; e o homem é, como dirá Hebbel repetindo um tema autenticamente eckhartiano, uma criatura eternamente em devenir, mas finita, que impede que o mundo se feche, se paralise e se endureça. Deus, que não sofre nem goza em si, senão que é paz imutável, goza e sofre na alma divinizada que tenha feito sua a vontade de Deus, vivendo multiplicada nas ações do justo a mesma vida humana, assim como o justo vive em Deus pela mesma vontade divina.

Em tudo isto está implícita a famosa distinção eckhartiana entre Divinitas e Deus. A Deus, enquanto Divindade, não se pode atribuir nem vontade, nem conhecimento, nem manifestação, nem outra determinação que se possa nomear ou representar. Mas de Deus, como Deus, é próprio o afirmar-se a si mesmo, o conhecer-se, o amar-se, o revelar-se a si mesmo. Porém, como se viu, seu agir exige a criatura e a determinação das personalidades se realiza por meio desta auto-afirmação. Mas se Deus, enquanto Deus, é homem (quer dizer, um homem divino ou divinizado) então a Deus corresponde uma quidditas (Etwasheit); e também esta é toda de Deus e só a ele pertence. Deus quer que tudo o que nele é princípio manancial e essencial se realize, se atualize, se exteriorize e se desenvolva em todos os seus aspectos, pois para este fim ele é. De outro modo que significaria e de que serviria o Divino? Se não existisse isto ou aquilo, não haveria nenhuma ação, nenhuma realização. Deus mesmo não seria e de nada seria Deus, Verum ipsum factum. Os valores são abstrações vazias fora de sua concriação histórica. O Universal ou o Uno devem exteriorizar-se no tempo e no espaço e desdobrar-se na multiplicidade, convertendo-se nas obras. O princípio “viquiano” se encontra anunciado, aqui, sempre que no factum não se veja a história de uma coletividade impessoal totalmente envolvida por um valor racional que transcende as intenções dos indivíduos em particular, senão a elevação de uma alma que tende a reconquistar, fora das “nações”, seu inconfundível destino individual: em Vico a intuição mística se laiciza e se democratiza.