Teologia Cristãos Essênios

TEOLOGIA CRISTÃOS E ESSÊNIOS
Mircea Eliade: História das Crenças e das Ideias Religiosas

As analogias entre a linguagem teológica essênia e a linguagem do Evangelho de João são também notáveis. Voltamos a encontrar nos textos de Qumran muitas expressões especificamente joaninas, como, por exemplo, “luz da vida” (8: 12), “filho da luz” (12: 36), “aquele que pratica a verdade vem para a luz” (3: 21), “o espírito da verdade e o espírito do erro” (Primeira Epístola de João, 4: 6) 46. De acordo com a doutrina dos essênios, o mundo é o campo de batalha entre dois Espíritos que Deus criou desde os primórdios: o Espírito da Verdade (também chamado “O Príncipe da Luz” e “O Anjo da Verdade”) e o Espírito da Maldade ou da Perversidade; este último não é outro senão Belial, o “Príncipe das Trevas”, Satanás. A guerra entre esses dois Espíritos e os seus exércitos espirituais desenvolve-se também entre os homens e no coração de cada “Filho da Luz” (Manual de Disciplina, 4: 23-26). Já se fez a aproximação entre o argumento escatológico essênio e certos textos joaninos. O Manual de Disciplina (3: 17-23) lembra que, embora sejam guiados pelo Príncipe da Luz, os Filhos da Justiça caem às vezes no erro, instigados pelo Anjo das Trevas. De modo semelhante, a Primeira Epístola de João fala dos “filhos de Deus” e dos “filhos do diabo”, e exorta os fiéis a não se deixarem enganar pelo diabo (3: 7-10, 4: 1-6). Contudo, enquanto os essênios estão à espera da guerra escatológica, na literatura joanina, embora a luta ainda dure, a crise está superada, porque Jesus Cristo triunfou sobre o Mal.

Convém assinalar outra diferença: na literatura joanina, o Espírito é em geral interpretado como o Espírito de Deus ou de Cristo (Primeira Epístola de João, 4: 13); no Manual de Disciplina, o Príncipe da Luz ou o Espírito da Verdade aparece como o colaborador dos Filhos da Luz. No entanto, a figura do Paracleto evocada por João (14: 17; 15: 26; 16: 13 etc.) parece derivar de uma teologia análoga à de Qumran. Cristo promete enviá-lo para testemunhar e interceder pelos fiéis, mas o Paracleto não falará em seu próprio nome. Uma função como essa, que não se esperava do Espírito Santo, sempre intrigou os exegetas. Os textos de Qumran permitem-nos compreender a origem do Paracleto; morfologicamente, ele é solidário de uma personagem da corte celeste de YHWH, ou seja, o anjo ou mensageiro divino. Todavia, as influências iranianas, em primeiro lugar o dualismo religioso e a angelologia, transformaram os dois anjos da corte de YHWH na encarnação de dois princípios contrários: bem/mal, verdade/mentira, luz/trevas. Os essênios, assim como o autor do corpus joanino, associavam-se a essa teologia e a essa escatologia palestinianas sincretistas, fortemente influenciadas pelo dualismo iraniano.

A despeito das numerosas semelhanças que acabamos de mencionar, o essenismo e o cristianismo primitivo apresentam estruturas distintas e colimam objetivos divergentes. A escatologia essênia deriva da tradição sacerdotal; a escatologia cristã mergulha as suas raízes no profetismo do Antigo Testamento. Os essênios conservavam e fortaleciam o separatismo sacerdotal; os cristãos, em contrapartida, forcejavam por atingir todas as camadas sociais. Os essênios excluíam do seu banquete messiânico todos os que eram impuros e deformados física, ou espiritualmente: para os cristãos, um dos sinais do Reino era justamente a cura dos inválidos (os cegos que veem, os mudos que falam etc.) e a ressurreição dos mortos. Por fim, a ressurreição de Jesus e o dom do Espírito Santo, a liberdade espiritual que sucedeu à disciplina da Lei, constituem o “acontecimento” central que distingue essas duas comunidades messiânicas.