Teolepto da Filadélfia — Seleção de Jean Gouillard
Análise da oração (euche)
Sentada em vossa cela, lembrai-vos de Deus, elevai vosso espírito acima de todas as coisas e prostrai-vos em silêncio diante de Deus, derramai a seus pés todos os sentimentos ( lit.: toda a disposição ) de vosso coração (kardia), aderindo a ele pelo amor da caridade.
A lembrança de Deus é a contemplação (theoria) de Deus, que atrai para si o olhar e o desejo ardente do espírito, iluminando-o com sua própria luz.
O espírito que se volta para Deus suspende todos os conceitos que informam sobre os seres; então, ele vê Deus sem imagem nem forma e, no desconhecimento supremo, ligado à glória inacessível, purifica o olhar. Ele não conhece — seu objeto é incompreensível — e, no entanto, conhece, na verdade daquele que é por essência, e que é o único a possuir o que ultrapassa o ser. Na transbordante bondade que surge desse conhecimento, ele alimenta seu amor e goza, assim, de um repouso bem-aventurado e sem limites. Tais são as características da verdadeira lembrança de Deus.
A oração (euche), por sua vez, é uma conversa da inteligência com o Senhor. A inteligência ( discursiva ) percorre as palavras da súplica, ao passo que o espírito fica inteiramente fixo em Deus. A inteligência não cessa de sugerir o nome do Senhor; o espírito aplica intensamente a atenção (epimeleia) à invocação do Santo Nome, e a luz da ciência divina estende sobre a alma (psyche) a sua sombra.
A verdadeira lembrança de Deus é acompanhada de amor e de alegria: “Lembrei-me de Deus e me alegrei” ( Sl 77,4 ). A oração (euche) pura é acompanhada do conhecimento e da compunção (katanyxis): “Quando vos invoco, eu sei: tu és meu Deus” ( Sl 56,10 ) e “O sacrifício agradável a Deus é um coração (kardia) contrito” ( Sl 51,19 ). De fato, quando o espírito e a inteligência se mantêm diante de Deus com atenção (epimeleia) intensa e oração (euche) ardente, a compunção (katanyxis) está junto.
Quando o espírito, a inteligência e o pneuma ficam prostrados diante de Deus, o primeiro pela atenção (epimeleia), a segunda pela invocação, o terceiro pela compunção (katanyxis) e pelo amor, o homem interior, todo, serve ao Senhor conforme o mandamento desse mesmo Senhor: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração (kardia)…” ( Lc 10,27 ).
Gostaria que soubésseis também isto, para que não vos arrisqueis a vos afastardes da oração (euche) e, imaginando orar, “correrdes em vão” ( Gl 2,2 ).
Muitas vezes, na salmodia vocal, é possível que a língua recite os versículos, enquanto o espírito se deixa levar para outros lugares e se dispersa entre as paixões e os objetos; assim, a significação da salmodia estará perdida. É o que se passa também quanto à inteligência. Muitas vezes enquanto ela passa pelas palavras da oração (euche), o espírito não anda junto, não fixa o olhar em Deus, o interlocutor do diálogo da oração (euche). Desatento, ele se deixa desviar por certos pensamentos. A inteligência pronuncia as palavras por rotina; o espírito deixa escapar o conhecimento de Deus. A alma (psyche) fica confusa e fria, porque o espírito se dispersa entre imagens e vaga à mercê das coisas que o surpreenderam ou que ele procurou.
Se falta ciência à oração (euche), se quem ora não está presente naquele que pode consolar, como poderia a alma (psyche) sentir alívio? Como poderia rejubilar-se o coração (kardia) que aparentemente estivesse orando, mas não empregasse a verdadeira oração (euche)? “Alegre-se o coração (kardia) dos que buscam o Senhor” ( Sl 105, 3 ). Ora, busca o Senhor aquele que, com inteligência total e afeição calorosa, prostra-se diante de Deus, afasta todo pensamento mundano através da ciência e do amor de Deus, que surgem da oração (euche) regular e pura.
Para maior clareza, vou propor uma dupla imagem: dos olhos, quanto à contemplação (theoria) da lembrança de Deus no espírito; da língua, quanto à dignidade e à função da inteligência na oração (euche) pura.
A pupila é para os olhos, a emissão da palavra é para a língua, o qüe a lembrança e a oração (euche), respectivamente, são para o espírito e para a inteligência.
Os olhos desfrutam a sensação visual do objeto visível, sem a mediação de palavras; percebem, na própria experiência visual, o conhecimento do objeto visto. Assim, o espírito que se aproxima de Deus amorosamente por meio da lembrança, unindo um sentimento ardente ao silêncio da intelecção simples ao extremo, é iluminado pela irradiação divina e atinge a garantia do esplendor futuro.
A língua, por sua vez, ao emitir as palavras, manifesta ao ouvinte a intenção secreta do espírito. De modo semelhante, a inteligência, ao proferir com assiduidade e ferver as breves palavras da oração (euche) ( lit.: as palavras de algumas sílabas ), manifesta, ao Deus que tudo sabe, o pedido da alma (psyche), através da perseverança na oração (euche) e do coração (kardia) insistentemente contrito; a contrição abre as entranhas afetuosas do Misericordioso e recebe a abundância da salvação. O profeta disse: “Deus, tu não desprezas o coração (kardia) contrito e humilhado” ( Sl 51,19 ).
Outro exemplo para vos conduzir à oração (euche) pura: a atitude diante do imperador da terra. Se conseguis ser recebida pelo imperador, ficais reta diante dele, pedis com a língua, fixais nele os olhos. Quando vos reunis com vossas irmãs em nome do Senhor, juntai, à presença do corpo (soma) e à salmodia vocal, a atenção (epimeleia) do espírito às palavras e a Deus, consciente daquele a quem vos dirigis e que vos dá audiência. Quando a inteligência se consagra à oração (euche) cem ardor e pureza, o coração (kardia) goza uma alegria inviolável e uma paz indizível.
Quando, depois, estiverdes de novo na cela, entregai-vos à oração (euche) da inteligência, com o espírito vigilante e o pneuma contrito; e a contemplação (theoria) estenderá sobre vós a sua sombra, graças à vigilância; a ciência habitará em vós pela oração (euche), a sabedoria descerá sobre vós pela contemplação (theoria), banindo todo prazer insensato e substituindo-o pelo amor divino.
Acreditai-me: é a verdade que vos digo. Se, em todas as vossas ocupações, não vos separais nunca da mãe de todo bem, a oração (euche), dentro em pouco ela vos mostrará o quarto nupcial, vos fará entrar e vos cumulará de um júbilo e de uma alegria indescritíveis. Pois, ela retira todos os obstáculos, aplana o caminho da virtude e o torna fácil para quem procura.
Escutai os efeitos da oração (euche) da inteligência. A conversa com Deus destrói os pensamentos apaixonados; a fixação do espírito em Deus afugenta as idéias mundanas. A compunção (katanyxis) da alma (psyche) expulsa a amizade da carne. A oração (euche) que consiste em repetir silenciosamente o nome divino, manifesta-se como a harmonia e a união evidente do espírito, da razão e da alma (psyche); pois, “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” ( Mt 18,20 ). Eis aí como a oração (euche), congregando as potências da alma (psyche), dispersas entre as paixões, atando-as entre si e a ela própria, une a alma (psyche) trina ao Deus uno em três Pessoas.
Em primeiro lugar, através da conduta virtuosa, ela retira da alma (psyche) a torpeza do vício; depois, reproduz a beleza dos traços divinos, por meio da santa ciência que ela tem de si própria, e apresenta a alma (psyche) a Deus. A alma (psyche) imediatamente reconhece o seu criador e é por ele conhecida, pois “o Senhor conhece os que lhe pertencem” ( 2Tm 2,19 ). Ela o conhece na pureza da imagem, pois toda imagem remete a seu modelo; é conhecida por ele graças à semelhança das virtudes (arete) que a fazem, e a um só tempo, conhecer Deus e ser por Ele conhecida.
Quem quer obter a complacência divina, pode proceder de três maneiras: suplicar com palavras, manter-se em silêncio ou ainda prostrar-se diante daquele que pode vir em seu auxílio.
A oração (euche) pura, que liga em si espírito, inteligência e pneuma, pela inteligência invoca o nome de Deus; pelo espírito, conduz sem distração para o Deus que consola; manifesta pelo pneuma sua contrição, sua humildade, seu amor, e se humilha diante da eterna Trindade e um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo.
A variedade dos pratos abre o apetite. Assim também, a variedade das virtudes (arete) desperta a diligência do espírito. Por isso, percorrendo o caminho da inteligência, repeti incessantemente as palavras da oração (euche), sem vos cansardes de invocar… a exemplo da viúva importuna. Então, caminhareis segundo o espírito, não prestareis atenção (epimeleia) às cobiças da carne e não interrompereis a continuidade da vossa oração (euche) por causa dos pensamentos mundanos. Quando cantais a Deus sem distração, passais a ser o templo de Deus. Se orais assim na inteligência, conseguireis chegar à lembrança de Deus, penetrar nas profundezas do espírito, ver o invisível numa contemplação (theoria) mística e servir a Deus, só vós e Ele, na união da ciência e das efusões do amor.
Se notardes que vossa oração (euche) enfraquece, recorrei a um livro; leia-o com atenção (epimeleia), para penetrar-lhe o significado. Não vos contenteis em percorrer superficialmente as palavras, mas examinai-as com a inteligência e entesourai o seu sentido. Depois, refleti no que lestes, para tocar, de modo agradável, a inteligência através do significado e torná-lo, para ela, inesquecível. As santas reflexões vão, assim, inflamar cada vez mais o vosso fervor… Como a trituração dos alimentos torna agradável a sua degustação, as palavras divinas, passando e repassando na alma (psyche), dão à inteligência unção e alegria…