Depois de ter relembrado esquematicamente o que a interpretação do homem como Filho de Deus põe fora de jogo, convém aprofundar a significação positiva. A esta se junta a princípio uma questão inevitável: se o homem porta nele a essência divina da Vida, não é ele Deus ele mesmo ou Cristo ? Em que difere ele deles? O que se trata, é de prosseguir na análise do nascimento transcendental do Filho da Vida bem longe para que os caracteres transcendentais que definem a essência verdadeira do homem sejam fundados e ao mesmo tempo apreensíveis em sua inteligibilidade. Viu-se como, na autogeração da Vida absoluta, se encontra engendrada uma Ipseidade essencial cuja efetividade fenomenológica é um Si singular — aquele do Arquifilho co-engendrado na vida logo como sua autorrealização e assim como idêntico a esta. É de maneira análoga, a bem dizer, que o homem verdadeiro pensado pelo cristianismo sob o título de “Filho de Deus”, aquele que denominaremos doravante o Si transcendental vivente, se acha engendrado na Vida. Na medida que, no automovimento pelo qual a Vida não cessa de vir em si e de se experienciar a si mesma, se edifica uma Ipseidade e assim um Si, na medida que este se experiencia a si mesmo é dele um efetivo, é necessariamente este então o Si engendrado neste automovimento da Vida é dele um efetivo ele também, é necessariamente este ou aquele, um Si singular e por essência diferente de todo outro. Eu mesmo sou este Si singular engendrado no auto-engendramento da Vida Absoluta, e não sou senão isto. A Vida se auto-engendra como mim mesmo. Se com Mestre Eckhart — e com o cristianismo — chama-se a Vida Deus, dir-se-ia: «Deus se engendra como mim mesmo» (Eckhart Sermões). A geração deste Si singular que sou eu mesmo, Eu transcendental vivente, na autogeração da Vida Absoluta, é isto meu nascimento transcendental, aquele que faz de mim o homem verdadeiro, o homem transcendental cristão.
No entanto, na medida que este nascimento transcendental se cumpre a partir da Vida, no processo de vinda em si desta Vida, então o Si singular que sou não advém a si senão na vinda em si da Vida absoluta e a porta nele como sua pressuposição jamais abolida, como sua condição. Assim a Vida atravessa cada um daqueles que ela engendra de tal maneira que nada há nele que não seja vivente, nada menos que não contenha em si esta essência eterna da Vida. A Vida me engendra como ela mesma. Se com Eckhart — e com o cristianismo — chama-se a Vida Deus, dir-se-ia: «Deus me engendrou como ele mesmo» (Eckhart Sermões). Mas seria precisamente aí a condição do Arquifilho co-engendrado no auto-engendramento de Deus, de tal maneira que sua geração seria a auto-geração de Deus ele mesmo, que seria Deus. Aqui se repete nossa questão: Eu, este Si transcendental vivente que sou, sou eu o Cristo?
Como se reportam um ao outro o sentido fraco e o sentido forte do conceito de auto-afeto? Como o primeiro remete necessariamente ao segundo de maneira a se fundar nele? Nisto que o Si singular que sou não se experiencia ele mesmo senão no interior do movimento pelo qual a Vida se projeta em si e desfruta de si no processo eterno de seu auto-afeto absoluto. O Si singular se auto-afeta, ele é a identidade do afetante e do afetado mas não dispôs ele mesmo esta identidade. O Si não se auto-afeta senão na medida que se auto-afeta nele a Vida absoluta. É ela, em sua auto-doação, que a dá ela mesma. É ela em sua auto-revelação, que a revela a ele mesmo. É ela, em seu constringir patético, que lhe dá de se constringir pateticamente e de ser um Si.
Assim se ilumina a passividade deste Si singular que sou, passividade que o determina integralmente. Passivo, ele não o é somente a respeito dele mesmo e de cada uma das modalidades de sua vida, à maneira donde cada sofrimento é passivo e vis-à-vis de si e não é possível senão a este título, não tendo seu teor afetivo senão desta passividade cujo teor fenomenológico puro é a afetividade como tal. Passivo, o Si o é então a respeito do processo eterno do auto-afeto da Vida que o engendra e não cessa de o engendrar. Esta passividade do Si singular na Vida, este Si que não passivo vis-à-vis de si senão porque ele o é a princípio a respeito da Vida e de seu auto-afeto absoluto.
Ora esta passividade do Si singular na Vida — passividade fazendo dele um eu — não é um atributo metafísico disposto pelo pensamento. É uma determinação fenomenológica constitutiva da vida do Si e que, como tal, não cessa de ser vivida por ele. Esta determinação é tão essencial, o experienciar que dela é feito tão constante, que nossa vida se confunde com este sentimento de ser vivida e que, se o Si se exprime espontaneamente ao acusativo, é na medida que dela se tem a experiência que é a sua, aquela não de se afetar ele mesmo mas de ser constantemente auto-afetado, e isso nele mesmo, em seu auto-afeto precisamente, independentemente de todo afeto estranho, de todo reporte ao mundo.
Ora o modo específico de passividade do Si singular enquanto auto-afetado no auto-afeto absoluto da Vida não define somente um traço geral de sua vida: engendra nela o conjunto de suas modalidades essenciais e como tais patéticas. Assim a angústia tem nascimento no Si como vindo dele. Ela tem sua possibilidade da essência mesma deste Si, deste sentimento que tem de experienciar o que experiencia sem aí ser por nada, sem poder nada aí mudar, sem poder se desfazer de si nem romper a ligação que o amarra a ele mesmo e faz dele este Si que é para sempre. Escapar a si, a este fardo que é para ele mesmo enquanto constantemente afetado por si sem que este auto-afeto venha dele ou lhe seja imputável de alguma maneira, — querer escapar a si e não poder o fazer, é o que provoca sua angústia e, ao mesmo tempo, o conjunto dos comportamentos que suscita e pelos quais tenta por sua vez se evadir. Assim a pulsão, nascida dela também na angústia e vindo dela, não é outra coisa que um destes comportamentos ou o mais importante dentre eles, ou ainda sua fonte comum. A pulsão é o esforço incansável da vida auto-afetada, quer dizer constantemente assediada por si, sucumbida sob seu próprio peso, para se subtrair a este, se desfazer de si. Na impossibilidade onde ela se encontra de quebrar esta ligação que o prende invencivelmente a ela mesma, ela tenta então de modificar a si mesmo, de converter — e é aí o princípio de sua ação, de toda ação concebível — seu sofrimento na alegria.
As questões essenciais que uma psicologia empírica crê poder situar em um horizonte objetivo e tomar no jogo de suas explicações mundanas derivam unicamente da condição do homem enquanto Filho de Deus ou, como devemos o dizer no termo desta análise, do estatuto do Si singular auto-afetado no auto-afeto da Vida Absoluta. Enquanto Filho, o homem é predestinado e sua destinação está escrita na relação recíproca dos conceitos fraco e forte do auto-afeto, seja na relação que se estabelece entre uma vida tal que a sua, constantemente auto-afetada sem ser jamais a fonte deste auto-afeto, e uma Vida que se auto-afeta absolutamente, tal a Vida de Deus.