Luria — Reschimu
Gershom Scholem
Fiel à tradição do Zohar, Luria encara o processo cósmico, até certo ponto, após o Tzimtzum, como um processo que se desenvolve dentro de Deus — uma doutrina, diga-se de passagem, que nunca deixou de enredar aqueles adeptos que tentaram sustentá-la em dificuldades das mais complexas. Esta concepção lhe foi facilitada pelo fato de ele acreditar, como já foi mencionado acima que um vestígio ou resíduo da luz divina — Reschimu na terminologia de Luria — permanece no espaço primevo criado pelo Tzimtzum, mesmo depois da retração da substância do En-Soph. Luria compara isso com o resíduo de óleo ou vinho de uma garrafa, cujo conteúdo tenha sido derramado. Assim, torna-se possível argumentar que o Reschimu, continua sendo criação divina, tal como se pode dar ênfase ao fato de que a substância do En-Soph foi recolhida, devendo, por conseguinte, ficar fora de Deus o que aparece como resultado do processo era apreço. Resta acrescentar que alguns dos mais decididos teístas dentre os cabalistas resolveram o dilema desprezando completamente o Reschimu.
Antes de ir adiante, pode ser de interesse salientar que esta concepção do Reschimu tem estreito paralelo no sistema do gnóstico Basilides que floresceu por volta de 124 d.C. Também aqui encontramos a ideia de um “abençoado espaço primordial, que não pode ser concebido, nem caracterizado por nenhuma palavra, embora não tenha sido totalmente abandonado pela ‘Filidade’”, termo com que ele designa a mais sublime realização das potencialidades universais. Da relação da Filidade com o Espirito Santo ou Pneuma, Basilides afirma que, mesmo quando o Pneuma ficou vazio e separado do Filho, ainda assim reteve ao mesmo tempo o perfume deste, que impregnava tudo em cima e embaixo, até a matéria amorfa e a nossa própria forma de existência. Também Basilides emprega o símile do vaso em que a delicada fragrância de um “unguento docemente aromático” persiste, ainda que o vaso seja esvaziado com o máximo cuidado.
Além disso, temos um protótipo precoce do Tzimtzum no gnóstico “Livro do Grande Logos”, um desses espantosos remanescentes de literatura gnóstica preservados pelas tradições coptas. Ai aprendemos que todos os espaços primordiais e suas “paternidades” vieram à existência devido à “pequena ideia”‘, o espaço que Deus deixou para trás como o radiante mundo de luz quando Ele “recolheu a Si mesmo dentro de Si mesmo”. Esta retirada que precede toda emanação é repetidamente acentuada. (Grandes Correntes da Mística Judaica)