Satz Espelho

Mario Satz

Há uma reveladora passagem do Zohar que fala do “espelho brilhante” sobre o qual o olho pode permanecer e “encher-se tão completamente de beleza que, por fim, penetra no mais íntimo do ser e inunda a alma com uma luz sempre duradoura. E a alma, tendo abarcado o significado interno da luz que a inunda, se aquece em sua irradiação e se satisfaz a todo momento com o prazer que emite”. Essa espécie de unio — como a chamam os místicos — de fato já ocorre, pois, ao recriar o mundo com seu olhar, o homem inverte, através do espelho de sua mente, o campo visual exterior. Só deve, pois, dar-se conta do que se dá volta. E isto para que a famosa lei da Tábua de Esmeralda — documento hermético que sustenta que: “O que está embaixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está embaixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa. E como todas as coisas provêm do Uno, pela mediação do Uno assim todas as coisas foram criadas desta coisa única por adaptação”, o que lhe permite entender essa ideia também num sentido horizontal: tão profundo é nosso interior quanto o exterior a nossos olhos, pois tudo faz parte de uma mesma entidade. Se compararmos as palavras “espelho”, rei, com “luz”, or, observaremos que só se diferenciam por duas letras: o yod (o Pai) no caso do espelho, e o vav (o Filho) para o caso da luz. Ou seja, a chamada Identidade Suprema é, do ponto de vista da Cabala, a luz que o espelho nos devolve.

Todavia, cada espelho tem duas faces, a brilhante e a opaca. A visível e a invisível. Estas são Hokhmah e Binah respectivamente, enquanto que Kether ou Coroa seria “a luz celeste” que se desloca entre, seu verdadeiro sustento e realidade. Em seu Sepher ha-Hokhmah ou Livro da Sabedoria, Eleazar de Worms, mestre do século XII, escreve: “O Criador mostrou a Moisés um espelho brilhante que é chamado a ‘coroa suprema’”. Esse espelho teria uma face opaca, a coroa, e uma face brilhante, a luz que a atravessa. Por mediação desse espelho Moisés conheceu a arte dos reflexos que se propagam pelos labirintos cranianos e redescobriu o Bereshit, o Princípio Único, esse Pacto de Fogo, essa Aliança de Luz cujo crisol era impossível de olhar de frente, sob pena de ficar cego. Pareceria que unicamente nos é dado — com olhos humanos — ver o criado, pois o Criador é demasiado vasto para o tamanho de nossos cristalinos. Quando contempla as maravilhas da Criação é-lhe dito que os céus são um “espelho fundido”. Diante de um tal espelho, qual a pupila que há de resistir à sua dança termonuclear, à brilhante pétala de um relâmpago caído da flor da tormenta? Como temos a tendência de confundir a imagem projetada com a luz que a gera, a imersão em nosso próprio tálamo exige do discípulo responsabilidade no discernir. Tozan, um mestre zen nascido na China no século IX, escreveu em seu “Samadhi do Espelho Ilusório”: “E como Contemplar-se no espelho. Observam-se a forma e o reflexo. Tu não és o reflexo, mas o reflexo és tu”. Essa inata tendência a confundir-nos em meio às imagens-ídolos pode dissipar-se quando transformamos nosso narcisismo em verdadeiro amor, quando nossas palavras encarnam em nossos gestos. Entre os antigos nahuatls do México, a definição do sábio incluía a de ser “um espelho” para os outros, quer dizer, em um torná-los conscientes de si mesmos através do vazio. “Sede cumpridores da palavra (poietai) e não apenas ouvintes; isto equivaleria a vos enganar a vós mesmos — diz São Tiago 1,22 —. Aquele que escuta a palavra sem a realizar, assemelha-se a alguém que contempla num espelho a fisionomia que a natureza lhe deu: contempla-se, mas, mal se afasta, já se esquece de como é. Mas aquele que procura meditar com atenção sobre a lei perfeita da liberdade (eleutherías), e nela persevera, não como ouvinte que facilmente se esquece, mas como cumpridor fiel do preceito, este será feliz no seu proceder”. O verdadeiro espelho de um homem são seus semelhantes, porém a luz que o une a eles transcende a um e a outros.

Se buscarmos as palavras hebraicas correspondentes à “lei perfeita”, encontraremos Tora tmimá, o que indica que o discípulo deve utilizar os textos como veículo de sua libertação, do mesmo modo que faz uso do espelho como utensílio de autoconhecimento. “As palavras da Torá — costumava dizer o rabi Natan, um mestre talmúdico — são como vasos de ouro. Quanto mais são esfregados e polidos, mais refletem o rosto de quem neles se olha. Se as puseres em prática, as palavras da lei te farão resplandecer o rosto”. E tradicional no meio hebreu considerar a Tora como um espelho: o que nela lemos num sentido é registrado pelo cérebro em outro. Por isso o cabalista dá volta às palavras em sucessivos drash, em contínuos jogos de paronomásias, aliterações e anagramas com o fim de achar o direito do reverso, os enlaces da trama. De modo semelhante, o terapeuta tem de ser um espelho para seu paciente, o qual, através de sua própria anagnose ou exame, pode chegar a descobrir-se, endireitar o torto, tornar-se destro por meio do sinistro.

A cura pelo fogo é a cura pela verdade. O objetivo do trabalho especular — de speculum, “espelho” — é observar as órbitas de nossas estrelas interiores, porque toda consideração — con sidus indica os “astros” — deve conduzir-nos a restabelecer a harmonia com o mundo, com o meio circundante. Em 1 Coríntios 3,14, lemos: “Manifestada será a obra de cada um, porque o dia a fará conhecer, pois pelo fogo será revelada, e a obra de cada um, qualquer que seja, o fogo a provará”. Toda inteligência celeste refletida pelo espelho é com frequência um símbolo solar. Mas também um símbolo lunar. Os sábios taoistas saíam pela manhã a recolher orvalho em seus espelhos, pois esse é o alimento da imortalidade que em linguagem cabalística se denomina “ressurreição dos mortos”. O espelho é o instrumento clássico de Psique, e para Al-Ghazali, o corpo é o lado opaco do espelho, enquanto que seu lado brilhante representa a alma. Novamente nos defrontamos com a mesma ideia: para dar-se conta tem-se que dar a volta. Por isso, os nazarenos estudavam a natureza do divino para em seguida compreender o divino da natureza.