São Patrício

São Patrício
Excertos da Legenda Dourada ou Legenda Áurea, trad. do latim de Hilário Franco Júnior
São Patrício (Saint Patrick)
*[http://en.wikipedia.org/wiki/Saint_Patrick|Wikipedia]
Patrício, que viveu por volta do ano do Senhor de 280, estava de pé pregando a paixão de Cristo ao rei dos escotos, e apoiava-se no báculo, cuja ponta involuntariamente furou o pé do rei. Acreditando que o santo bispo fazia aquilo de propósito porque não se poderia receber a fé em Cristo sem sofrer, o rei suportou pacientemente a dor. Por fim o santo percebeu, ficou estupefato, e logo rezou para curar o rei e obter para todo o país o privilégio de nenhum animal venenoso poder ali viver. Não foi a única coisa que obteve, pois, segundo se diz, a madeira e a casca das árvores daquela região servem de remédio contravenenos.

Um homem tinha roubado do vizinho uma ovelha, que comeu, e o santo homem exortou o ladrão, quem quer que fosse, a ressarcir o prejuízo, mas ninguém se apresentou. No momento em que todo o povo estava reunido na igreja, em nome de1 ele ordenou que a ovelha desse um balido dentro da barriga daquele que a comera. Assim aconteceu, o culpado fez penitência e dali em diante todos trataram de não roubar mais.

Patrício tinha o hábito de venerar todas as cruzes que via, mas certa vez passou diante de uma grande e bela cruz sem perceber, e seus companheiros advertiram-lhe que ele não a tinha visto nem saudado. Ele fez uma prece e perguntou a Deus de quem era a cruz, e ouviu uma voz que vinha debaixo da terra: “Não vê que sou um pagão que enterraram aqui e que é indigno do sinal-da-cruz?”. Ele então mandou tirar a cruz daquele lugar.

O bem-aventurado Patrício pregava na Irlanda com poucos resultados, por isso pediu ao Senhor um sinal que assustasse os pecadores levando-os a fazer penitência. Por ordem do Senhor, ele traçou então com seu báculo um grande círculo no solo, e em toda aquela circunferência a terra abriu um grande e fundo poço. Foi revelado ao beato Patrício que aquele era o lugar do Purgatório, e quem quisesse ali descer não precisaria mais fazer penitência por seus pecados em outro purgatório. A maioria dos que ali entrasse não sairia, mas alguns voltariam depois de lá ter permanecido da manhã de um dia à manhã do outro.{FOOTNOTE()}Jacopo de Varazze foi contemporâneo da definição teológica do Purgatório, reconhecido pelo papa Inocêncio IV em 1254 e pelo II Concilio de Lyon em 1274. Ele volta ao tema no capítulo 158, “A comemoração das almas”. Sobre a longa evolução dessa ideia e seu sucesso no século XIII, veja-se o clássico J. Le Goff, O nascimento do Purgatório, trad., Lisboa, Estampa, 1993 (ed. orig. 1981).{FOOTNOTE} De fato, muitos dos que ali entraram não voltaram.

Muito tempo depois da morte de Patrício, um nobre chamado Nicolau quis se penitenciar de seus muitos pecados no Purgatório de São Patrício. Depois de ter se mortificado com quinze dias de jejum como todos faziam, usando a chave guardada numa abadia abriu a porta do poço em questão e desceu por ele. Em um dos lados encontrou a entrada de um oratório no qual logo depois apareceram monges com alva {FOOTNOTE()}Estola (stola), literalmente “veste de cima”, é uma faixa de tecido usada em cima da alva (alba, longa veste branca usada nas cerimônias litúrgicas) e embaixo da casula (peça da vestimenta sacerdotal sem mangas e gola). Trata-se de uma insígnia sacerdotal que bispos e padres colocam atrás do pescoço de forma a que suas pontas caiam paralelamente sobre a parte dianteira, enquanto os diáconos usam-na em diagonal, partindo de ombro esquerdo.{FOOTNOTE} celebrando o ofício. Disseram a Nicolau que fosse forte, porque o diabo o faria passar por várias provações. Ele perguntou que ajuda poderia ter contra elas, e os monges explicaram: “Quando você se sentir atingido pelos castigos, no mesmo instante exclame: ‘Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador‘”.

Logo que os monges retiraram-se, apareceram demônios que com doces promessas tentaram convencê-lo a voltar de onde viera e a obedecer-lhes, garantindo que cuidariam dele e que o levariam incólume para casa. Mas como ele não quis obedecer, logo ouviu rugidos e mugidos de diferentes animais ferozes, como se todos os elementos da natureza quisessem aterrorizá-lo. Tremendo, com um medo horrível, apressou-se a exclamar: “Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador”. E no mesmo instante acabou completamente aquele terrível tumulto das feras.

Ele continuou a caminhar e chegou a um lugar no qual uma multidão de demônios disse-lhe: “Você acha que vai escapar de nós? De maneira alguma! Ao contrário, é agora que vai começar a ser afligido e atormentado”. Apareceu então um enorme e terrível fogo e os demônios disseram: “Se não concordar conosco, vamos jogá-lo neste fogo”. Diante de sua recusa, agarraram-no e jogaram-no naquele braseiro terrível e logo que ele se sentiu torturado exclamou: “Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador” e o fogo extinguiu-se no mesmo instante.

Dali chegou a um lugar em que viu homens sendo queimados vivos flagelados pelos demônios com lâminas de ferro em brasa que atingiam suas entranhas, enquanto outros, deitados no chão de barriga para baixo, mordiam a terra gritando: “Perdão! Perdão!”, o que levava os demônios a torturá-los ainda mais. Viu outros cujos membros eram devorados por serpentes e cujas vísceras eram arrancadas com ganchos incandescentes pelos carrascos. Como Nicolau continuava a não ceder, foi jogado no fogo para sofrer o suplício com as lâminas, mas exclamou: “Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador” e foi imediatamente libertado daqueles tormentos.

Em seguida, foi a um lugar onde os homens eram fritos numa frigideira e onde havia uma enorme roda com pontas de ferro ardente nas quais ficavam suspensos pelos membros, enquanto a roda girava com tanta rapidez que faiscava. Mais adiante viu uma construção imensa, onde havia fossas cheias de metais em ebulição nas quais alguns homens eram obrigados a mergulhar um pé, outros os dois pés, outros estavam ali até os joelhos, outros até a barriga, outros até o peito, outros até o pescoço, outros enfim até os olhos. Mas Nicolau escapava de cada um desses tormentos invocando o nome de Deus.

Continuando seu caminho, viu um poço larguíssimo do qual saía uma fumaça horrível e um fedor insuportável. Dali tentavam escapar homens vermelhos como ferro em brasa, mas os demônios empurravam-nos de volta. Os demônios explicaram: “Este lugar que você está vendo é o Inferno, onde mora nosso senhor Belzebu. Se não nos obedecer, jogá-lo-emos ali e não haverá meio algum de escapar”. Como Nicolau ouviu isso com desprezo, eles o agarraram e o jogaram no poço, sendo atingido por uma dor tão violenta que quase esqueceu de invocar o nome do Senhor, mas com o coração, pois não podia com a voz, conseguiu exclamar: “Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador” e logo saiu ileso dali. Toda a multidão de demônios desapareceu, vencida.

Prosseguiu a viagem, e noutro lugar viu uma ponte que devia atra-vessar, mas que era estreitíssima, lisa e escorregadia como gelo, e sob a qual corria um imenso rio de enxofre e fogo. Estava desesperado com a ideia de atravessá-la quando se lembrou da invocação que o livrara de tantos males. Aproximou-se confiante e pondo um pé na ponte disse: “Jesus Cristo, filho do Deus vivo, tenha piedade de mim que sou pecador”. Um grito violento assustou-o a ponto de perder o equilíbrio, mas pronunciou as palavras costumeiras e manteve-se firme, e assim repetindo as palavras a cada passo, atravessou a ponte em segurança.

Chegou então a uma campina muito agradável, envolta em suave aroma de diferentes flores e na qual lhe apareceram dois belos jovens que o levaram a uma cidade magnifica, maravilhosamente resplandecente de ouro e pedras preciosas. De suas portas saía um cheiro tão delicioso e relaxante que lhe parecia não ter sentido nenhum tipo de dor ou fedor. Os jovens disseram que aquela cidade era o Paraíso. Como Nicolau queria entrar, eles disseram que primeiro deveria voltar para a casa dos seus pais, sem medo, pois os demônios não lhe fariam mal, ao contrário, fugiriam apavorados ao vê-lo. Depois, passados trinta dias, ele morreria em paz e então entraria naquela cidade como seu cidadão perpétuo. Nicolau subiu então por onde descera, contou a todos tudo o que lhe tinha acontecido e trinta dias depois repousou feliz no Senhor.

NOTAS

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  1. Jesus Cristo