Guilherme de Saint-Thierry — Carta de Ouro e Orações Meditadas
Carta de Oro y Oraciones meditadas, Guillermo de Saint-Thierry, Editorial Monte carmelo, Biblioteca Cisterciense n° 13, Burgos (Españ a), 2003, 344 p., ISBN 84-7239-799-8
Tradução de Antonio Carneiro das páginas 289, 290, 291 e 292
Oração n° 14 — Oração do Abade Guillhermo
1. Senhor Jesus Cristo, verdade e vida (Jo 14,6), que proclamaste quais deviam ser os adoradores verdadeiros de teu Pai, os que lhe adoraram em espírito e verdade (Jo 4,23). Suplico-te que livre minh’alma da idolatria. Livra-la para para que buscando-te não me una à teus companheiros e comece a vagar atrás de seus rebanhos durante o sacrifício de tua oração. Faz com que se deite contigo e se apascente de ti no ardor do meio-dia de teu amor (Ct 1,7).
2. Por uma espécie de sentido natural procedente de seu princípio, a alma sonha de certa maneira com teu rosto, cuja imagem foi criada (Gn 1,27). Mas, perdeu o costume, ou talvez nunca o adquiriu. Aliás, não há cessado de receber imagens uma trás outra, que se apresentam como em tromba no momento de sua oração.
3. Mas, quando se trata de orientar uma ponta de sua intenção sobre esse rosto que não vê, às vezes lhe pesa o esforço de sua atenção. Com frequência, só com muito suor de seu rosto consegue comer seu pão como castigo por sua velha maldição (Gn 3, 17-19). E às vezes nem isso, porque se lhe força voltar para a pobreza de sua casa, pobre e faminta. Tão pronto nada em abundância quanto desfalece.
4. Acontece como na visão. De nada serve a vista da pupila enviar um raio natural por si mesma, e que ar que atravessa a mirada tenha o espaço claro e puro, se não incidir no corpo destinado e pretendido. Se segue mais além não mantém a atenção por causa do cansaço, mas sim que cindida em partes, se divide e se perde. O mesmo ocorre com a intenção de quem contempla e ora: se a inteligência da razão ou do amor não propõe algo concreto para ti, onde deposite afeição e seja o fim da intenção, ofereça e deponha o fruto da devoção, a contemplação murcha, a oração amorna, a intenção se cansa, a inteligência se debilita e a razão se sente impotente.
5. Mas o que tenho no céu? E contigo que me importa a terra? (Sal 72, 25) Se com minha oração te busco neste céu, formoso sim, mas material, que vejo acima, equivoco-me de igual modo como se te buscasse na terra que piso; ou se te incluo ou excluo em algum lugar ou fora de lugar, sempre será um lugar que criou. Se te imagino com alguma forma ou com algum sucedâneo, meu Deus, cometo idolatria (Dt 5,8).
6. Oh verdade, responda-me, por favor. Mestre, donde vives? Vem, diz, e olha. (Jo 1, 38-39) Não crês que estou no Pai e o Pai em mim? (Jo 14,10) Graças a ti, Senhor, não é pouco o que temos conseguido: temos encontrado teu lugar. Teu lugar é também teu Pai. Neste lugar estás localizado. Mas tua localização é muito mais sublime e oculta que qualquer falta de localização. Esta localização é a unidade do Pai e do Filho, a consubstancialidade da Trindade.
7. Mas, temos encontrado somente o lugar para o Senhor? (Sal 131,5) Procura, minh’alma, esforça-te o quanto te é possível, não tanto por uma razão afetiva quanto pelo afeto do amor. E se o lugar de Deus é Deus, se esta localidade da Trindade é a consubstancialidade, elimina toda representação de lugares e de locais e compreendes que encontrastes à Deus em si-mesmo. Ele se mostrou para ti e é tanto mais certo e verdadeiro quanto que de si mesmo, em si mesmo e por si mesmo é o que é. E como aqueles velhos filósofos disseram da verdade, Deus tem de tal modo o ser que de modo algum pode deixar de ser. Existe algo mais certo e sólido donde se oriente nossa atenção e possa sustentar-se nossa afeição?
8. Se alguma vez em nossa oração abraçamos os pés de Jesus (Mt 28,29), nos aderimos à forma de sua humanidade como se fosse uma pessoa com o Filho de Deus, e nos formamos uma espécie de afeto corporal, não nos equivocamos, entretanto, atrasamos e impedimos a oração espiritual e ele mesmo nos disse: É conveniente que me vá. Se não me vou, o Paráclito não virá para vós. (Jo 16,7).
9. Mas, se cedermos à indolência e a inércia, e gritarmos à Deus desde o profundo da ignorância (Sal 129,1), como se estivéssemos encerrados em um calabouço; se quisermos ser somente escutados sem preocuparmos com a graça do rosto daquele à quem suplicamos, sem dar importância a que esteja irritado ou apaziguado com tal de receber o que pedimos, saiba quem tais coisas recebe de Deus é que não sabe pedir grandes coisas à Deus, nem é grande coisa o que recebe.