Ressurreição de Lázaro (Jo XI)

MILAGRES DE JESUS — RESSURREIÇÃO DE LÁZARO (Jo XI)

EVANGELHO DE JESUS Jo 11


Joaquim Carreira das Neves: Escritos de São João
A narrativa do sinal miraculoso da ressurreição de Lázaro é o mais extraordinário de todos os milagres de Jesus, se observado com olhos puramente historicistas. Trata-se de alguém que já tinha morrido há quatro dias e que volta novamente a esta vida. Chamava-se Lázaro, tinha duas irmãs, Marta e Maria, com quem vivia na aldeia de Betânia, a três quilômetros de Jerusalém. Os pormenores da narrativa são, realmente, empolgantes, prendendo a atenção do leitor de modo vivo. Assemelha-se aos contos das mães às crianças, ou dos professores aos alunos mais novos, suspensos pelo fim feliz.

Na catequese normal de católicos e protestantes, quando o sacerdote ou o pastor ou outros catequistas perguntam aos catequisandos porque é que Jesus é Deus, respondem sempre: “porque fez milagres e só Deus pode fazer milagres como Jesus fez, sobretudo o milagre da ressurreição de Lázaro depois de já ter morrido há quatro dias”.

Mas o texto tem outra profundidade e outro sentido.

A nova exegese começa por apreciar as dificuldades de ordem linguística que a leitura do texto nos apresenta, mas, sobretudo, a funcionalidade dos espaços e das personagens em presença.

A exegese descobre algumas dificuldades na leitura significativa do texto. A maior reside no fato do protagonista central, o doente e o morto Lázaro, nunca falar. Ele é um humano passivo que põe em movimento as irmãs, os amigos judeus das irmãs, os discípulos de Jesus, os inimigos de Jesus e, sobretudo, o próprio Jesus. Tudo e todos giram à volta deste doente-morto. Mas nem a doença nem a morte têm direito a qualquer pronunciamento. Lázaro é a imagem do silêncio e do mistério. Em Jo 12, 1-11, este morto-vivo volta à cena por ocasião dum jantar em sua honra. Estão presentes as suas irmãs e Jesus. Maria “ungiu os pés de Jesus com uma libra de perfume de nardo puro, de alto preço, e enxugou-lhos com os seus cabelos…” (12,3) .Judas reage mal, mas Jesus defende a ação “estranha” de Maria e o dinheiro do perfume nele usado, dizendo: “Deixa que ela o tenha guardado (a grande soma de dinheiro) para o dia da minha sepultura!” (12, 7). E a narrativa continua: “Um grande número de judeus, ao saber que ele (Jesus) estava ali, vieram, não só por causa de Jesus, mas também para verem Lázaro, que ele tinha ressuscitado dos mortos. Os sumos sacerdotes decidiram dar a morte também a Lázaro, porque muitos judeus, por causa dele, os abandonavam e passavam a crer em Jesus.” (12, 9-11).

Havemos de concluir que é tudo muito estranho. Lázaro ressuscita depois de quatro dias de morto, dá um jantar em sua casa, convida Jesus e amigos. A sua irmã Maria, agradecida a Jesus pela vida do irmão, derrama nos seus pés um perfume muito precioso e enxuga-lhos com os seus cabelos. Geralmente, o perfume é colocado na cabeça das pessoas e não nos pés. O que significará tudo isto? E porque é que Lázaro não diz uma só palavra? E porque é que os sumos sacerdotes decidem matar Lázaro, se ele é um puro humano passivo, um puro humano instrumental nas mãos dum destino misterioso? E como é que se explica que em Jo 11, 2 se diga de Maria que “era aquela que tinha ungido os pés do Senhor com perfume e lhos enxugara com os seus cabelos”, se a ação só vai acontecer algum tempo depois da morte e ressurreição de Jesus? Que prolepse é esta e que significado poderá ter?

Os comentadores também costumam apresentar outras dificuldades ou “cicatrizes” no texto.

E excepcional que as pessoas sejam nomeadas: Lázaro, Maria e Marta. Em todos os milagres de Jesus, se exceptuarmos nos Sinópticos os nomes de Jairo (Mc 5,22) e de Bartimeu (Mc 10,46), nunca os doentes e familiares são nomeados. Assim acontece em João com a cura do filho do funcionário real de Cafarnaum (4,43-53), com a cura do paralítico da piscina de Betzatá (5, 1-8) e com a cura do cego de nascença (9, 1-41). Será que João depende de Lc 10, 38-42? Não parece ser possível porque a Maria e Marta de Lucas não têm nenhum irmão chamado Lázaro e a passagem lucana só se entende na Galileia e não na Judeia. Será que os nomes de Maria, Marta e Lázaro foram acrescentados a uma narrativa de milagre primitivo, quando ainda não havia qualquer discurso explicativo? Assim pensam muitos comentadores, que defendem uma fonte joanica de milagres, à maneira dos Sinópticos, em que a narrativa do milagre obedeceria ao esquema simples e puro dos Sinópticos. Só mais tarde é que a doutrinação que aparece nos diálogos de Jesus com Marta e Maria sobre a morte e ressurreição seria acrescentada. O que se diz deste “sinal” também serve para o “sinal” da cura do paralítico da piscina de Betzatá e respectiva doutrinação de Jesus sobre o sábado (5, 10-18) e para o sinal da cura do cego de nascença e doutrinação sobre o sábado e sobre a verdadeira luz (9, 10-41). Contrastando com estes três sinais em que a narrativa do milagre cede lugar à doutrinação, não há dúvida que o milagre da cura do filho do funcionário real (5, 43-53) não tem qualquer tipo de doutrinação e é muito semelhante ao descrito em Mt 8, 5-13 e Lc 7,1-10. Mas o sinal das bodas de Caná (2, 1-11) também nos apresenta o diálogo entre Jesus e sua mãe e entre o arquitriclino e o noivo, embora muito diferentes dos diálogos presentes nos sinais da cura do paralítico, cego de nascença e ressurreição de Lázaro. Podemos supor uma fonte primitiva de sinal-milagre à maneira dos Sinópticos, mas não podemos construir, em nosso entender, as várias fases evangélicas, independentes do evangelho atual. Não possuímos dados textuais suficientes.

Na busca da narração primitiva, muitos comentadores, ainda fiéis ao método histórico crítico, procuram encontrar as várias camadas redacionais, com profundas divergências entre si. E um autêntico exercício de exumação literária. De entre eles, Wilkens deve ser o mais radical. Segundo ele, a narrativa primitiva teria esta configuração literária:

1. Havia um doente, Lázaro de Betânia.

3. As irmãs mandaram dizer a Jesus: “Aquele que tu amas está doente.”

17. A sua chegada, Jesus encontrou-o já no túmulo.

33. Jesus, ao vê-los chorar, comoveu-se no seu espírito e perturbou-se.

34. E ele disse: “Onde o puseram?”

35. Eles disseram: “Senhor, vem e vê.”

38. Jesus chegou ao túmulo. Era uma gruta com uma pedra por cima.

39. Jesus disse: “Retirai a pedra.”

41. Eles retiraram-na.

43. E ele gritou com uma voz forte: “Lázaro, vem cá para fora.”

44. O morto saiu com os pés e as mãos atadas a ligaduras e com o rosto coberto com um lenço. Jesus disse-lhes: “Desligai-o e deixai-o ir.”

O que este autor nos fornece não é um relato joanico de “sinal”, mas um esqueleto de relato, sem qualquer substância ou carne. E muito natural que a tradição oral joanica dos relatos dos “sinais” tivesse percorrido um longo caminho, partindo do menos para o mais. Mas não possuímos nenhum argumento literário ou histórico para estabelecermos estádios intermédios.

Os comentadores também costumam apresentar a dificuldade dos duplicados nas duas intervenções de Marta e Maria (11,20-27e 32-33). De fato, as fórmulas de introdução são iguais (“Senhor, se tu cá estivesses, meu irmão não teria morrido”), mas as atitudes e respectiva doutrina são totalmente diferentes, como veremos.

Como já assinalamos, a maior dificuldade consiste no fato de Lázaro, que deveria ser a personagem principal entre os três irmãos, passar a segundo plano. E Marta a que desempenha o papel principal. Como explicar o “silêncio” de Lázaro?

A maneira como o texto apresenta as duas irmãs é um pouco estranha: (ll,l: “de Maria e de Marta,sua irmã”; 11,5: “muito amigo de Marta,da sua irmã…”; 11, 39:”A irmã do defunto, Marta…”; 11, 45: “Muitos dos judeus que tinham vindo a casa de Maria”, sem nomear Marta).

E fato que alguns estudos recentes apresentam pequenas diferenças entre os dois papiros mais antigos de partes de João, o P 66 (do ano 200) e o P 75 (princípios do séc. III), e os dois grandes manuscritos do séc. IV, o célebre Vaticanus (B) e Alexandrino (A). Para Jo 1, 1-10, P 66 difere 5 ou 6 vezes do Vaticanus, o P 75 uma só vez. Para Jo 11, 19-36, o P 66 afasta-se 23 vezes de B e o P 75 uma só vez. “Estas divergências são iluminadoras: testemunham uma certa liberdade na transmissão textual já que os dois manuscritos saíram da mesma época e do mesmo país, o Egito. Mas sobre o texto, como chegou até nós, constatamos que nenhuma destas divergências textuais é fundamental e devemos, portanto, renunciar a encontrar um testemunho de um estádio intermédio do texto de João”. Para sermos honestos, só podemos partir do texto e retirar dele o respectivo sentido e significado.


Roberto Pla: Evangelho de ToméLogion 51

No episódio da ressurreição de Lázaro, que é possível entender como o relato da ressurreição de um morto vivente, com independência de que sua narração esteja também fundada na sua ressurreição manifesta, diz Jesus a Marta: “Teu irmão ressuscitará”. Marta pensa então na ressurreição de um filho do mundo, segundo a doutrina tradicional dos judeus, e responde: “Já sei, ressuscitará no último dia, na ressurreição”. Mas Jesus se refere à ressurreição dos mortos, a ressurreição dos justos, entre os quais inclui a Lázaro, e que pode alcançar seu cumprimento “na carne” se o Filho do Homem envia o sopro de sua luz sobre a consciência do filho do mundo até o ponto de unificação de ambos. Por isso diz Jesus aquilo: “Eu sou a ressurreição e a vida”.Em continuação explica Jesus algo acerca dos dois modos de ressurreição: um é o daquele que quando morre já crê no Filho do Homem; este é o morto que “embora morra viverá”. O outro modo de ressurreição é o do que crê no Filho do Homem e que como consequência realiza a vida, sem sair da carne, a obra de unificação na consciência que a abre a porta para ressuscitar dentre os mortos. Deste diz: “não morrerá jamais” (Jo 5, 29).

Os primeiros destes são os que depois de mortos ressuscitarão para a Vida, mas não sem antes haver abandonado para a condenação os componentes psíquicos agregados (Jo 5,25). Os segundos são aqueles mortos viventes que escutavam sem cessar a voz do Filho de Deus. A presença, uma vez descoberta, se nutre de si mesma, dia a dia, até que com a purificação acabada ressuscitam como eleitos dentre os mortos e passam da morte à vida antes de saborear a morte (Jo 5,25).