Renúncia (Mt XVI, 24-28; Mc VIII, 34-38; Lc IX, 23-27; Lc XIV, 33)

DITOS DE JESUS — RENÚNCIA (Mt XVI, 24-28; Mc VIII, 34-38; Lc IX, 23-27; Lc XIV, 33)

VIDE: DESAPEGO; KATAPHRONESIS

EVANGELHO DE JESUS: Mt 16:24-28; Mc 8:34-38; Lc 9:23-27; Lc 14:33

33 Assim, então: quem dentre vós
não se despedir de todos os seus bens não pode ser meu adepto. [Chouraqui]


Tomás de Aquino: Catena aurea — Lucas IX, Catena aurea — Lucas XIV


Roberto Pla: Evangelho de ToméLOGION 55

Como a negação não é fácil de efetuar mas muito trabalhosa, se diz dela que há que tomá-la “cada dia” para andar com ela sem pretender salvar a vida ou a alma. A vida, não é a Vida senão o viver do que há de negar porque não é o próprio, e a alma, o que cremos que é a alma, é somente uma sucessão de imagens de nós mesmos, aderidas erroneamente à Glória que realmente somos. Por isso está dito: “quem quiser salvar sua alma, a perderá, mas quem perde sua alma por mim, esse a salvará” (Lc 9,23-24). Tomo a tradução “alma” e não “vida”, segundo o texto latino do NT. O vocábulo psyche se entende assim com referência às vivências conscientes e não-conscientes.

LOGION 68
A negação de si mesmo referia-se Jesus quando dizia: “Se alguém quer me seguir, negue-se a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me”. Convém esclarecer o alcance profundo dessa negação solicitada por Jesus e parece consistir em uma negação cotidiana e persistente, gradual, de todo os nomes adquiridos no mundo como tesouros agregados na terra, ao Ser estrito, puro, de cada homem. É esta uma ação destruidora prévia que deve ser encaminhada a deixar de sentir-se identificada a alma com tudo o que não é nome divino. Esse nome — Eu sou o que é — somente revela (com exclusão de qualquer outra coisa), ao Filho do Homem — “o que é” — quando em seu seguimento, a alma, já desnuda dos nomes do mundo, acaba por ser só um lugar vazio, tão vazio para os olhos do mundo que a espada da perseguição não encontra onde fundir seu fio.

O “lugar” que deve mostrar-se vazio para que nele resplandeça a glória do nome divino, é a alma. O evangelho conhece e explica a possibilidade alternativa em que está o Homem real, quer dizer, o espírito, o Eu puro, muito além da estrutura terrena da alma, de ganhá-la e perdê-la. As referências a alma dadas neste sentido pelo relato evangélico se afirmam sempre em uma contradição, que somente se explica pelo fato bem sabido de que “Ser” no mundo é “nadidade” para o mundo real, quer dizer, que os agregados mundanos, não são nada para o mundo celeste, o mundo do Filho do Homem. Por isso é dito: “De que serve ao homem (a alma), ganhar o mundo inteiro, se se perde ou arruína a si mesmo (o espírito)?” (Lc 9,25).

A negação que Jesus reclama ao que quer segui-lo, à alma que pretende chegar a seu si mesmo, ao espírito ou Eu puro, para ser uma só coisa com ele, é sempre uma prescrição prévia de todos os “lugares” ou nome do mundo agregados à alma na vã crença de que são verdadeiros; a negação que pede Jesus exige uma lavação batismal da alma, tão profunda, quanto completa, que deve levar à alma até a situação limite de estar “triste até o ponto de morrer” e finalmente a beber com Jesus aquele cálice de morte que ele bebeu (Mc 10,39), pois a cruz e a morte de Jesus são no evangelho, além disso, figura, explicada pelo evangelho, de todo aquele que segue os passos do Filho do Homem.

A contradição reservada à alma aparece escrita em muitos logia evangélicos, mas se pode recordar especialmente na passagem joanica seguinte: “O que ama sua alma a perde, e o que odeia sua alma neste mundo, a guardará para uma vida eterna” (Odiar tua alma). Aqui não é o mundo o que odeia ou prescreve o nome divino, senão a alma que é convocada a odiar os nomes ou componentes do mundo nela incrustados e que erroneamente estima como conformando uma alma mundana. Estes são os que devem ser negados, quer dizer, desmascarados, reconhecidos em sua verdadeira condição de ser um apêndice inadequado da alma.

LOGION 87
Jesus o Vivente — a alma de Jesus — tinha que saber bem que a cruz é o limite da Plenitude, o signo terminal que separa ao homem interior, “pleno”, do homem hílico, “deficiente”. Por isso dizia: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-me”. Negar-se a si mesmo implica retirar a consciência de sua pétrea identificação com o corpo, o qual é o “objeto” da deficiência, para levá-la, livre, ao outro lado do limite, à Plenitude, onde refulge o Reino de Jesus o Vivente. Este é o caminho, a senda fronteiriça, e a subida ao Calvário, que em si mesma, como vontade de transpassar os limites, é a cruz. Um cristão gnóstico, recordado por Clemente de Alexandria, o diz: “Levando Jesus nas costas, nos ombros, às sementes (a Palavra semeada), as introduz — através do signo — no Pleroma”.

LOGION 98

LOGION 113
Jesus descreve, em uso paradoxal, o estado extremo da tribulação, e o diz expressando-se como Cristo oculto, o Filho do Homem: “Quem quiser salvar sua alma (vida = psyche), a perderá, mas quem perder sua alma (vida) por mim, a encontrará (Lc 9,24)

Não é fácil converter em realidade interior o sentido deste logion onde a dupla acepção da palavra psyche (alma, vida), proporciona uma dificuldade prévia de entendimento. Jesus “manifesto” pede a negação de si mesmo a todos, para chegar através dessa negação e do seguimento do exemplo de Jesus à contemplação do (universal) Filho do Homem. Por essa contemplação não sobrevém até que a negação da alma e da vida perecedora que ela supõe, é absoluta.

Por isso diz Jesus que há que perder a alma (psyche, a vida mortal da alma), para encontrar a Vida eterna (psyche), a qual é em si mesma o Filho do Homem. Ou o que é o mesmo: quem quer salvar sua Vida (eterna), deverá perder antes, voluntariamente, sua alma (sua vida perecedora), significada pelo mundo. Isto é uma mudança com ganância.


Ananda Coomaraswamy: NADIFICAÇÃO; ATMANYAJNA EL SACRIFICIO DE SÍ MISMO

São estas as palavras de Cristo: “Eu sou a porta; todo aquele que entrar por mim será salvo; entrará, e sairá.” Não basta ter chegado à porta; precisamos ainda que nos deixem entrar. A entrada, porém, tem um preço. “Quem quiser salvar a sua alma, que a perca.” Dos dois “si mesmos” do homem, os dois Atmans dos textos indianos, aquele que era conhecido pelo nome de Fulano de Tal deve matar a si mesmo para que o outro esteja livre de todos os fardos — “livre como a Divindade em sua não-existência”.