Puech (HCPG1:Prefácio) – individualismo gnóstico

É tão importante notar que o gnóstico tende a colocar tudo em relação a si mesmo e à sua salvação pessoal, quanto descrever sua atitude como “egoísta”, se preferirmos, ou “egocêntrica”: em todo caso, “individualista”. Individualismo que se manifesta não apenas na afirmação resoluta e inequívoca de um “eu” soberano e autônomo no qual desemboca, mas também na multiplicação, na profusão quase anárquica de sistemas e escolas dos quais essa afirmação foi o início. Tendo se tornado, ou tendo voltado a ser ele mesmo, tendo se “concentrado”, “recolhido”, recuperado a si mesmo, cada gnóstico se encontrou e se possui na unidade e na plenitude de seu ser singular e distinto: é e se proclama “perfeito”, ou, se prefere usar o termo equivalente usado no Evangelho de Tomé, tem e se apresenta como um monachos, como um indivíduo não só isento de servidões “mundanas”, sociais ou carnais, “sozinho”, “isolado”, “solitário”, mas, mais ainda, “unificado” interiormente, reduzido a si mesmo e à unidade, de alguma forma “único”. Por outro lado, e se tomarmos emprestada a expressão dos adversários que veem na “variação” a regra que preside a enxurrada de seitas e doutrinas, a prova de sua inconsistência, e na arbitrariedade de um pensamento ou de uma imaginação entregue a si mesma o próprio princípio da “heresia”, teremos que repetir a de “tantos gnósticos, tantas opiniões”. É um exagero, sem dúvida. No entanto, é fato que cada um dos iniciados — ou, pelo menos, dos “Grandes Iniciados” — é levado a elaborar seu próprio sistema de gnose, ou, dentro da mesma “Escola”, a interpretar a seu modo, a modificar e a reformular de forma diferente a doutrina inicial. Não existe a “ortodoxia”, assim como não existe a “Igreja” gnóstica. Agrupados, Mestre e discípulos, “perfeitos” e “fiéis”, formam conventículos, “comunidades carismáticas” sem estrutura nem outros vínculos que os espirituais, dispersos de um lado e de outro e suscetíveis de se dissolverem ao sabor das inspirações. Somente o maniqueísmo, e precisamente porque, por vontade de seu fundador, ele se constituiu como Igreja (no sentido rigoroso e verdadeiro do termo), e foi dotado de uma estrutura e de instituições eclesiásticas, deu à “gnose” que forma a base de sua mensagem e de suas práticas o caráter de um dogma canonicamente estabelecido, intangível, inalterável e autoritário.

Como individualista, a atitude gnóstica é também, ou precisamente por isso, aristocrática. O “Perfeito” é, portanto, um “nobre”, um “filho de um Rei”, um “Escolhido” que faz parte de uma “elite” como resultado de uma “escolha”, uma “seleção” feita pelo Espírito. Possuidor de “Conhecimento”, mais uma vez, puro noûs, pura “inteligência”, ele pertence àquela classe distinta de homens que constituem os “Pneumáticos”, os “Espirituais”, ele se sente e se sabe incomparável e superior àqueles que compõem as outras duas classes: os “Psíquicos”, que possuem uma alma, uma psique, mas que são desprovidos do “espírito”, do pneuma, e, muito mais ainda, os “Hílicos”, os “Khoikes”, os “Carnais”, que nada mais são do que matéria, corpo, lodo. Suas revelações não podem, portanto, ser divulgadas à “massa”, à “multidão”, nem ser compreendidas por todos, de modo que o benefício de seu ensinamento é reservado ao “pequeno número”, a uma elite de ouvintes ou leitores: é, em si mesmo, “esotérico”. Finalmente, é uma atitude “revolucionária”, em vários sentidos. Mesmo que se desenvolva em um contexto de aspirações e teorias comuns ao final da Antiguidade e marcado pelo papel preponderante de certas preocupações subjetivas, a busca do gnóstico por seu “si” e sua salvação o isola dentro de si mesmo por seu caráter exclusivo e radical. Além disso, é uma busca que acaba transformando ou arruinando completamente a visão de mundo então unanimemente aceita, que subverte suas perspectivas, que inverte o sentido das relações por ela estabelecidas entre o homem e o universo. O gnóstico assume e, em última instância, se opõe ao cosmos tal como é concebido pela física e pela metafísica helênicas; é precisamente sua ordem, suas leis e sua constituição regular e hierárquica, consideradas como restrições e obstáculos, que ele nega, discute ou despreza para superá-las e deixá-las para trás. O mundo sensível, terrestre ou celestial, é assim “degradado”, condenado, relegado à categoria de coisas ruins, medíocres ou desprezíveis, e seu rebaixamento acarreta o de tudo o que está ligado a ele: os corpos, as estrelas, o tempo, os arcontes planetários ou até mesmo — o que é mais grave — o próprio Demiurgo, o Deus responsável por sua formação ou criação, bem como por seu governo. Mais do que uma crítica ou uma discussão, trata-se, sem dúvida, de uma rebelião, e uma rebelião obstinada, violenta e de longo alcance, com graves consequências: contra a condição humana, a existência, o mundo e o próprio Deus. Ela pode levar perfeitamente, como pode ser visto repetidamente, tanto à imaginação de um evento final que será eversio, revolutio, reversão e subversão da situação atual, substituição recíproca da esquerda e da direita, do exterior e do interior, do inferior e do superior; quanto ao niilismo: ao niilismo dos “gnósticos libertinos” que, isentos de toda lei natural ou mortal, usam e abusam de seus corpos e do mundo para profaná-los, “exauri-los”, negá-los e aniquilá-los; ao niilismo de um Basilides para quem todo ser, todas as coisas, o universo compreendido na totalidade de seu devir, estão destinados a encontrar na noite da “Grande Ignorância”, na quietude do “não-ser”, sua realização definitiva.